A cena é esta: eu dirigindo, calor - muito calor. O sinal fica vermelho, paro. Um rapaz coloca seu pano no para-brisa do meu carro, indicando que iria limpá-lo. Eu, de forma automática, querendo fugir dos diálogos possíveis e das obrigações prováveis, logo disse: "Não tenho dinheiro, moço". Se não fui ingênua, fui uma imbecil. Pelo menos, foi dessa forma que me senti assim que o rapaz me retrucou: "Não, não esquenta".

E, com seu pano seco, limpou com carinho e cuidado todos os cantos do meu para-brisa e os retrovisores, também. Fiquei sem saber o que dizer, como agradecer. Soltei o tradicional "Obrigada, que Deus te abençoe" e fui embora, com um sorriso de afeto e gratidão no rosto, me sentindo a pior das espécies, porque talvez, se eu procurasse, talvez tivesse qualquer moeda, qualquer coisa. Mas, enfim... O Destino quis assim, exatamente assim.

E foi aí que mais uma vez a vida me ensinou um turbilhão de coisas. Fiquei pensando sobre o dar sem querer nada em troca, sobre expectativas, sobre a pressa diária, sobre os esteriótipos, sobre a pobreza nossa de cada dia - da hipocrisia que nos sonda e nos cega. Fiquei pensando e me toquei que o meu 2014 foi muito parecido com aquela cena que aconteceu em poucos minutos, frente a um sinal fechado.

Recebi afeto em momentos que eu nada tinha a oferecer, só tristeza. Por outro lado, a alguns neguei, por hábito ou por medo, o afeto pouco que havia guardado com muito custo. Pensei na miséria da minha condição humana e, logo depois, me alegrei na grandeza de espírito dos amigos que me acompanharam ao longo desse difícil e maravilhoso ano.

Senti-me grata, ainda que sem merecer todos os motivos. E, passada a tristeza que parecia infindável no início deste quase-interminável 2014, percebi que a paz quase-incompreensível havia se instalado em mim por tempo indeterminado.

(Boas festas do Boas de Prosa pra você :*) 



Tenho 25 anos e já presenciei três ameaças de fim do mundo. Isso que eu me lembre. Pois é. Todas elas acontecem na passagem de ano. As pessoas ficam apreensivas. Não acreditam, mas também não desacreditam. Fica aquela áurea depois do Natal. E dura até a passagem. Como se essa última semana, fosse sua chance de se redimir pelo ano todo. Repensar sua vida, perdoar as pessoas em volta. Purificar.    Em mim, sempre deu um friosinho na barriga. Seja véspera de fim do mundo ou não. Fico aflita, não penso direito, bate uma doidera.
 A sensação de reconstrução em mim  é mesmo muito grande. Seja o calendário uma coisa para facilitar nossa vida ou uma  estratégia capitalista para parcelarmos  as compras, seja o que for, funciona comigo. Eu tento fazer um ano melhor  do que o outro. Eu tento completar metas. Não quer dizer que eu sempre consiga.
  Ano passado teve um abraço triplo e um abraço em uma latinha de cerveja gigante. No outro ano teve um banho de mar que lavou a alma. Antes disso teve uma fogueira sem fogo e carinhas de batata que (juro) falavam. E antes ainda, eu deu oi e tchau a um quase amor intenso e passageiro. A passagem em si, a virada, é sempre um dia impar pra mim. Um divisor  de águas, uma abertura de portões, de encruzilhadas. Um caminho.
  Nesse final de ano, eu mesma decidi dar uma virada na minha vida. Isso mesmo. Nada de destino, acaso, nada. Eu mesmo sendo protagonista da minha humilde história e fazendo ou desfazendo certas coisas. O que significa mais pressão sobre mim, mas frio, mas loucura, mais listas e mais expectativas.
  Sim, eu não penso direito no final do ano. Tudo é uma grande confusão maravilhosa. Por isso não postei texto na terça.  Por isso o meu vem hoje, no dia errado,  entre dedos tremidos que não veem a hora de se agitarem pelo ar e abraçar  mil pessoas, conhecidos ou não, enquanto os pés ficam na areia e a cabeça no céu!

Conheço pessoas incríveis por acaso. De forma inesperada, despretensiosa, sem querer... Tanto faz, chame como quiser, eu chamo de acaso. O acaso tem me apresentado às melhores pessoas da minha vida. Lembro que, aos 14 anos, sem querer, no meio do ano letivo, ela entrou para a minha turma e, mais sem querer ainda, sentou do meu lado. Foi a melhor amiga que pude ter em toda minha adolescência. Achávamos que fazíamos quase tudo escondido, mas nossos pais sabiam sempre. Às vezes, nosso programa era, simplesmente, passar o dia no shopping fazendo absolutamente nada. Era bom, bom demais.

Foi por acaso também que, indo encontrar essa mesma amiga em uma sorveteria, conheci um dos meus grandes amores. Amor bom é história que fica pra sempre. Então, posso dizer que foi um dos mais bonitos amores da minha vida. Como sou nova, espero ter mais uns três desses. Lembro que ele perguntou o que eu queria fazer na faculdade, riu das minhas bobagens e me acompanhou até em casa. Assim, de ônibus mesmo - coisa que me era inédita, na época. É, só o acaso para me fazer conhecer pessoas assim.

No primeiro dia de trabalho do meu primeiro emprego, estava ainda tímida e um pouco impulsiva, recém saída da universidade, encontrei-a logo na sala ao lado. Ela estava lá como se me esperasse todo esse tempo pra contar sobre os livros que leu, as piadas da sua prima, os amores e os desamores que, volta e meia, entristeciam seu coração. Mal sabia eu quão parecidas éramos (ou seríamos) e ainda somos. E, bom, quão diferente, também, podemos ser.

Ah, o acaso... Dia desses, o acaso me presenteou com uma surpresa. Sutil como a brisa repentina num dia quente. E era você, bonito. Sorrindo, logo ali. Você e seu violão, que insistia em cantar as mais lindas canções de amor. Admito, o acaso foi meu, ou melhor, a culpa foi minha: não notei que as cantava todas para mim.

"Vou levando assim, que o acaso é amigo do meu coração, quando fala comigo, quando eu sei ouvir" (R. Amarante)


Apesar de necessitar todos os dias das tecnologias, eu assumo, não dou conta. Não dou conta desse bando de atalhos a botões. Não dou conta das janelas que abrem ou fecham do nada e de aplicativos que querem publicar em meu nome.

Então, dia desses meu tio me deu um celular que era dele. Apesar de não ser exatamente novo, é mais novo do que qualquer um que eu já tive. O que significa que coisas bizarras aconteceram toda vez que tentei ouvir música, mandar mensagem ou ir na simples galeria de fotos. E foi lá, lá mesmo. Na galeria. 

Lá estava eu, não eu do tempo presente. Eu de quase cinco anos atrás, sentada na grama da UFES, depois de um rock, com um menino com a cabeça deitada do meu colo. Não olhávamos para a foto e, sim, um para o outro. Parece que foi há milênios atrás. 

Lembro que depois do fim do namoro eu queria me livrar das fotos. Eu queria, mas não podia. Queria, porque ao contrário do breve relacionamento, que sempre foi tranquilo, o fim pareceu um plano de intriga made in Malhação. E não podia, porque mesmo que olhar aquelas caras risonhas nas fotos me fizesse mal, eu não aguento apagar memórias. Acho que tudo na nossa vida é importante. 

Eu quis dar um sumiço nas fotos. Apenas para que eu não me deparasse com elas quando fosse procurar uma foto para perfil ou uma com a galera para fazer uma homenagem Então, eu coloquei um nome aleatório em uma pasta, coloquei dentro de outra pasta escrito “fotos” e dentro de outra escrito “UFES” e dentro de outra que não lembro o nome. Como na vida online perdemos até coisas que queremos muito ver todos os dias, guardar, imprimir… Imagina o que você quer esconder? Fácil ficar de fora, entre uma formatação e outra, ainda mais como você (quando eu digo você sou eu) tem uma habilidade super limitada no mundo online. 

Não sei por que macumba, plano secreto ou ironia do destino essas fotos foram parar no meu celular. Na pasta do meu blog. Do lado de uma foto do filme “Um dia de Fúria”. Mas a real é que aqui estão. 

Quando olhei, foi um choque momentâneo. Não esperava. Mas não foi  ruim. Me lembrou uma época de festas, férias, verão intenso, vento no rosto e praia. Esqueci do fim. Nem me lembro dos detalhes hoje em dia. Sei, sempre soube, que não podia durar. Mas me fez bem, ver que minha boa memória seletiva, me lembrou, de primeira,  de uma tarde lendo blogs de piada no colo dele, e não de qualquer mágoa posterior. 

Como diria o poeta, que seja eterno enquanto dure. E segue a vida. 

"Amie" de Lee Ann Marcel, inspirado em Damien Rice, assim como texto a seguir
Fica melhor ler depois de dar o play aqui

Nossos olhos fitavam a arma de um crime inafiançável. As lágrimas caíam de seus olhos num curso muito natural e não pretendiam parar. Eu cuspi e tinha o gosto do seu suor. Seu pranto era constante e dizia, inconsolável: “eu não faço esse tipo de coisa”. Restava-me apenas concordar e repetir, repetir, re-pe-tir. A minha inconsciência pesava sobre a minha consciência dizendo “Evoé Baco! Evoé Vênus!”, mas eu sabia que era o momento errado para alguém novo.

Seu rosto parecia transfigurar-se, enlouquecendo. Uma música insistia em tocar sem parar e cantava “Is that alright?”. Pronunciei-me, mas foi um equívoco. Se estivesse carregada, ela teria me matado. “Amor um mal”. Provavelmente, queria me calar durante o tempo que durasse a canção.

Lancei-lhe um olhar frio, gelado. Mas ela me atirou ao chão com levantar de suas pálpebras. Estava nua, sentada na beira da cama. No vão da porta, eu me apoiei, tragando mil sensações e, às vezes, um cigarro no canto da boca.

Ela se vestiu e finalmente.

***

Nunca tinha percebido quão cinza era o meu quarto, a minha vida. O chão me puxava. Sentei, deitei, chorei. Queria sentir seus passos, quando fosse voltar. Dormi por uns segundos e sonhei que fazíamos sexo, ao som da tempestade, num dia gelado. Você dizia que já estivera aqui tantas vezes e tirava o cinza das paredes com suas marcas de batom. Acordo, solitário. Lá estava eu a desfiar a recordação.

Abri uma garrafa de vinho e deixei a canção me invadir.

***

Amanheceu e o silêncio era como uma xícara vazia. Escrevi duzentas cartas. Em algumas, eu me desculpei, em outras a xinguei. Mas, em todas, pedi que voltasse. Ora dizia ser um mentiroso que merecia morrer, ora declarava-lhe um amor incondicional. Ouso dizer que não menti. Nas cartas. Precisava que ela soubesse e se lembrasse de quem eu era. Um romântico assumido, louco e desesperado. Não tinha outra saída, mas enviei apenas uma.

“Eu amo sua depressão e amo sua dupla personalidade. Eu amo quase tudo o que você tem a oferecer”.

***

Num dezembro cinza e cansado, as pessoas me desejavam feliz natal. Completamente inapropriado. Sentia falta dela, das mãos que sabiam exatamente onde tocar numa manhã de natal. Pude sentir seu cheiro, doce perfume. Era um telegrama.

“Querido,
Eu me lembro bem da primeira vez que vi seus olhos melancólicos. Lembro bem, porque a minha mente parou de funcionar quando te vi. Queria que estivesse aqui, porque conheci coisas maravilhosas. Estou distante, muito distante. Só quero te pedir que seja feliz. Eu sinto sua tristeza me chamando. Mas eu não posso voltar.
Estou casada. Feliz natal.
Amie”

Chorei, bebi e fumei. Meu carro estava me esperando. Dirigi a noite toda. “Que merda essa mulher quer de mim?”. Foda-se.

***

Abria e fechava o meu isqueiro na lentidão de quem estava embriagado e a observava do outro lado da rua. Entre uma e outra tragada do meu cigarro, eles se tocavam. A minha xícara estava vazia. Mas ela estava feliz, sorria mesmo enquanto falava.

Fui o seu maior erro.

Um garoto lhe entregou um guardanapo em que estava escrito “Um brinde, querida”. Ela limpou os rubros lábios e mandou de volta.

Eu posso esperar.

Rafaela, quando criança, era chamada de “Fafa”, ela adorava. Era Fafa pra lá, Fafa pra cá e, de repente, seus amigos cresceram, outros foram embora, e seu apelido passou a ser “Rafa”. Rafaela achava estranho, ela gostava de Fafa. 

Sempre gostou de novela, aí se acostumava com um personagem, ria muito com a parte da comédia e ficava lá sofrendo junto ao casal da trama. Cada novela que chegava ao fim, Rafaela chorava, queria continuar grudada em seus personagens preferidos.

Quando assistia a um filme, onde existia um “triêngulo amoroso”, Rafaela sempre escolhia um pra torcer. E ela tinha seus argumentos, do porquê a menina devia ficar com aquele cara, mas acabava que ela escolhia o outro. Rafaela sofria como se a decisão fosse dela e que tinha tomado a errada, depois sempre lembrava: “ela devia ter escolhido o outro, ele era tão mais fofo”. 

Ela tentava não assistir a Séries, porque sabia que ao final de que cada temporada iria ficar arrasada, mas, às vezes, acabava pegando alguma pra assistir. Rafaela escolheu uma pra amar, a série tinha 10 temporadas. Rafaela grudou naqueles personagens como se fossem amigos próximos. Quando acabou de fato, ela não queria acreditar, ficava triste pelos cantos, as pessoas riam e diziam que era só uma Série, mas definitivamente não era só uma Série (pelo menos não para Rafaela). E, então, ela continuou assistindo, repetidamente.

Quando seu primo arrumou uma namorada, Rafaela, de início, nem queria se aproximar, sabia que seu primo iria arrumar outra rapidinho, mas depois ela foi ficando na família e Rafaela se aproximando e pronto seu primo, por motivo que não saberia dizer, largou a menina e ela sumiu. Sim, sumiu e Rafaela sempre lembrava dela e tentava manter contato.

Rafaela estudou oito anos em uma escola, tinha amigos de verdade ali e, quando seus pais decidiram que iria pra outra escola, ela esperneou, gritou, disse que não, mas acabou tendo que ir. Pra tentar acostumar com a ideia, fixou na mente que aqueles amigos iriam ficar pra sempre – mas a gente sabe que não é assim. Na outra escola, ela começou a ter outros amigos e, antes mesmo de perdê-los, já sofria com a ideia. Além de amigos, Rafaela se apega a professores. Espera por cada aula, fala sempre deles e tenta puxar sempre algum assunto, mas, como tudo, eles vão embora e Rafaela fica daquele jeito que vocês já “conhecem”. 

Se eu te falar que Rafaela se apega até ao achocolatado que toma todos os dias e quando seu pai muda, ou melhor, tenta mudar a marca, ela faz um escândalo, você não vai acreditar. Eu sei, foi difícil pra eu acreditar também. Ela não quer mudar seus móveis de lugar, tem uma jaqueta que não larga por nada, não se imagina sem seu gatinho de estimação que tem desde criança, não quer mudar seu número de celular por nada e só dorme com seu travesseiro de quando era bebê.

Quando gostou de alguém pela primeira vez, não correu atrás, tinha medo de se apegar demais, só não sabia que já estava apegada. E, quando gostou de alguém pela segunda vez, fez totalmente diferente de antes, se doava inteira por aquilo, fazia de tudo e, quando percebeu, dependia daquele relacionamento ou da presença dele. Tanto do primeiro (que foi mais fraco), quanto do segundo (que foi amor de verdade), Rafaela nunca esquece, do nome, do perfume e do telefone (ela decorou).

Se tem alguma coisa que Rafaela não se apega é ao, próprio e nunca saído de sua boca, desapego. Esse Rafaela nem se lembra que existe, não sabe utilizá-lo e muito menos pensa em descobri-lo.

Aline Miranda é nossa "mini" poeta, que já nos mostra tanta grandeza, ainda que tão nova. Aprende rápido com a vida. É irmã da Juane e é a nossa convidada do mês.

foto: Juane Vaillant




Eu nasci para ir embora.
Fora do lugar, desajustado, embora não pareça. Uma pecinha que não é de lugar nenhum, mas que sempre se encaixa razoavelmente em vários quebra-cabeças, mas que não pertence. Falta de localização. Desterritorialização.
Cada novo lugar que descobria, seja no atlas ou pela janela do trem, parecia o lugar certo. Não que eu realmente embarcasse ou desembarcasse. As vezes eu só pensava.
Um pouco sobre possibilidades, um tanto sobre vantagens.Nunca parando realmente para planejar um futuro sólido, eu fui levando. Mudando de rumo, quando parecia conveniente. Nada era tão forte que poderia ser substituído, por um desses futuros móveis. E eu fui em frente. Sempre em frente. Nunca para trás, nunca em círculos.
Plantado minhas sementes por ai, continuei a me encaixar em quebra-cabeças tão confusos quanto eu mesmo. Muitas vezes a resolução dos mesmos se parecia com uma pintura de Pollock. Lindamente sem sentido algum.
Não sempre. Só por pouco tempo.
Nada parecia tão forte para me fazer ir, mas tão pouco existia algum tipo de laço, de elo, que me prendesse por aqui. Não até então.
Adiando as viagens, comecei a imaginar, que talvez, só talvez, seria melhor nunca sair, deixar o refugio viver intacto, no lugar onde ele jamais desmoronaria. O desejo de viajar é o que manteria minha sanidade tão frágil. Mas, não tardou o dia, que a profecia criada e acreditada, somente por mim, veio por si.
Eu nasci para ir embora. Eu disse. E fui.
Mas sinceramente eu gostaria de  não ter que inventar um motivo para ficar. 




No ponto de ônibus, Ana esperava. Esperava, sem esperar. Era como se estivesse grogue, como se o efeito colateral da vida fosse exatamente aquele. O cansaço pesava mais do que os livros na mochila, mais do que pesava a força que a puxava para o chão. E a vontade era dormir ali mesmo, naquele deserto de concreto.

Sem perceber seus próprios movimentos, quando deu por si, já estava dentro do ônibus, com a cabeça encostada na janela. A cabeça batia no vidro a cada quebra-mola. Num desses, Ana saiu do transe e percebeu que ainda faltava um bom caminho até chegar em casa.

Eram quase meia-noite. Olhou para fora do ônibus e notou que estava chovendo. Notou que seu cabelo estava um pouco úmido, também. O ônibus parou em um sinal vermelho que parecia fazer graça com o tempo. Tentando fugir do transe, os olhos de Ana procuraram qualquer coisa que a deixasse interessada o suficiente para não dormir e perder o caminho de casa.

Num poste, estava o cartaz. O cartaz. Ele dizia: "O amor pode dar certo". Ela apertou bem os olhos para ter certeza do que lia. Ajeitou-se no banco, um pouco incomodada com o recado que a vida acabara de lhe dar. Um pouco emburrada. Um pouco cética, um pouco crédula.

E, de repente, a cidade falava com ela. As ruas formavam milhares de pequenos rostos que sorriam harmoniosamente. Os postes eram como minhocas que repetiam, porém de forma desordenada, a frase que ela havia acabado de ler. 

Os semáforos, pequenos insetos, voavam sempre em bando, um atrás do outro. Vermelho, amarelo e verde. "Por que não azul, também?", pensou Ana. E sorriu. Ela sabia que não fosse o cansaço, o sono, o transe, talvez, pudesse realmente entender o que estava acontecendo.

A cabeça bateu mais uma vez no vidro da janela e o juiz apitou o fim do jogo:

- Esse é o ponto final, moça.



Depois da tempestade vem a calmaria. Dizem. Sempre dizem. Porém esquecem de explicar a parte importante. A calmaria, já que estamos em metáforas marítimas por aqui, não é uma boa fase. É péssimo. Você fica à deriva, perdido, sem rumo. É na tempestade que tudo acontece. Todas as transformações. Boas ou ruins.

Quando eu estava no meio do turbilhão, com mil coisas me remexendo de um lado para o outro, mil caminhos que podiam dar tudo ou nada, algo me freou. Foi meu corpo. Ele reagiu de todas as formas e dores possíveis. Faltou ar. Faltou espaço, faltou garganta.

Sobrou tempo. Eu não podia produzir, não podia sair. Só a cabeça trabalhava. Trabalho. E deu um nó. Tantas escolha que eu fiz que, hoje, me parecem tão bizarramente erradas. Penso no valor que dei para algumas pessoas e no afastamento que causei em outras. Penso na minha mãe, da cozinha, me dizendo que eu me envolvia demais. Que eu me entregava demais a projetos, a amizades. Na vida.

Penso na minha irmã me dizendo que eu me complico, me atraso, me atrapalho. Que não paro muito pra pensar, só vou fazendo.
Refleti. Os dias estavam normais, enferma e sã, eu continuei andando por dentro de mim. Até que BUM! Dois socos na boca do estomago. No âmago. Não sei mais onde.

Uma morte. Simbólica, mas notória. Para me dizer que tudo nessa vida acaba. Até mesmo os laços que pensamos serem tão infinitos.

Um nascimento. Carne e osso. Para me lembrar que nada é tão ruim. Nada. Sempre tem aquela luzinha. Pequena em forma de mãozinha de bebê, que injeta um pouco de ar dentro da gente.

Eu tenho uma memória péssima. Esqueço coisas, afazeres, datas, números. Confundo nomes e ruas. Mas até que gravo bem as senhas. Apesar disso, tenho uma memória olfativa muito apurada. Sempre tive forte sensibilidade para cheiros - bons e ruins - e acho que por isso, sem querer, passei a colecioná-los. Mas, é claro, nem todos os cheiros me lembram de alguma coisa e nem todas as coisas me deixam seus cheiros. Acontece que eu não tenho poder de escolha sobre isso.

Certo dia, após uma chuva fina, senti aquele cheiro gostoso que fica, das plantas, da terra molhada. Eu, que na hora dirigia, fui transportada para a adolescência, quando eu passava as férias na Barra da Tijuca, no Rio. O lugar que eu costumava ficar era repleto de árvores, arbustos, jardins, pés de carambolas e muitas flores. Isso fazia com que o cheiro sempre ficasse assim, agradável, mesmo quando não chovia. E acho que por isso, mesmo quando não tinha ninguém para brincar comigo, estava tudo na mais perfeita paz.

Digo isso, porque preciso ponderar. Sempre. Andei dizendo que memória olfativa é uma sacanagem da vida comigo. Para ponderar, me forcei a lembrar desse episódio que, aliás, se repetiu algumas outras vezes, sempre que a chuva decidia deixar aquele cheiro incrível.

Teve esse outro dia. Que não foi ruim, mas também não foi tão bom. No ônibus, desatenta e distraída pelo filme que se passava pela janela, fui interrompida por um cheiro. De alguém, sei lá de onde surgiu. Um cheiro muito específico, de um alguém muito querido que, apesar dos dramas da juventude, me fez muito bem. Éramos divertidos juntos. Ríamos de qualquer besteira e tudo era motivo para fazer piada, dar risada. Era bom andar pela cidade juntos. Parando por aí em qualquer praça.

Não foi tão bom lembrar, porque deixou mais do que saudade, deixou aquele sentimento chato de nostalgia, quando a gente quer e não quer voltar no tempo. E, no fim, a gente decide conviver com aquelas lembranças da melhor forma possível, para que, se doer, que seja de saudade.

Até então, tudo bem. Mas, agora, preciso explicar porque amaldiçoei esse meu quase-dom da memória olfativa. Estava em um dia reflexivo. Aliás, quase todos os meus dias são reflexivos. Acontece que nesse dia eu estava mais, estava submersa nos meus pensamentos. Então, decidi assistir a um filme que já tinha visto. E que, imagino, ser a única pessoa que chora ao assisti-lo. Ou seja, eu estava bem sensível.

No meio do filme, fui encontrar, rapidamente, uma conhecida na rua, jogar papo fora, nada demais. Quando estava voltando pra casa, a pé e sozinha, senti um cheiro que - juro - não sei de onde veio. E era um perfume. Um dos bons, que me lembrava alguém. Alguém que, por um tempo, foi muito especial. Depois não foi mais.

E, em segundos, era como se eu estivesse lá, te abraçando, sentindo seu perfume. Lá, com você, sempre que você quis, sempre que você pediu e precisou. Lá, quando você fingiu que eu não era nada. Lá, quando eu desisti de nós. Lá, quando você passou, triste, sem dizer oi. Lá, quando, com saudades, você me procurou. Lá, quando eu disse não. Lá.

O barulho do portão de casa abrindo me tirou do transe em que eu me encontrava. As lágrimas queriam descer, mas eu não deixei. Voltei a assistir o filme de onde eu tinha parado e chorei mais do que das outras vezes ao ver a despedida na cena final.
foto: Juane Vaillant



Então é isso. Vou fechar os olhos.
Vou rodar, irei dançar, eu irei. E não vou me importar, por alguns segundos. E nesse meio tempo, enorme, infinito e mínimo, alguém irá aparecer. E eu vou cair. Exatamente como caí tantas vezes. E vou deixar, subir a mão, baixar a voz.
E esquecer, sim.
E vou gostar, mas por um minuto. Um ou dois, ele será você. Ou irá servir para você enxergar, por de trás do muro, por de trás da áurea que você criou. Em torno de si. De mim. E em algum momento alguém vai dizer, dizer coisas que eu quis ouvir. Mas eu não queria ouvir. Não assim.
Está claro como o Sol. Como o céu. Tentarei ser maior do que eu mais uma vez. E pensar primeiro em terceiros. E vou me culpar. Achar que outra pessoa, exatamente como eu, está pensando em quem está comigo. E certa vez alguém me disse, que amor não é amor sem pele. E que pele pode existir sem amor. Discordo. Discordo de todos. E eu vou chorar.
Por você.
Por pensar que isso, por algum motivo, te deixou mal. Amaldiçoando todas que tiveram a chance. Um mero relance. Deixaram passar. Pena. Muita pena. Pensar que por algum motivo bizarro, você pense que não é bom o bastante. E enquanto isso, continua se aproximando. Cada vez mais, do que eu chamo por ai de perfeição. E engolir em seco. E prender o choro. E embaçar o olho. Tremer os pés. Concentrar. Contar até três. Voltei. Abri os olhos. Um minuto se passou. Você ainda está lá.
Droga.

Vocês podem repetir centenas de vezes que shopping é o centro do consumo, o símbolo do capitalismo, porque é mesmo, afinal. Mas sabe a praça de alimentação? É, a praça de alimentação. Já repararam nela? Dei por mim que aquilo lá é um grandioso ponto de encontro. Entre conhecidos e, claro, desconhecidos, já que na hora do rush a gente corre pra sentar em qualquer lugar que esteja vazio.

Era segunda-feira, quase noite. Tinha saído do trabalho e, naquela fome insana de final de expediente, fui comer no japonês - como a gente costuma dizer. Sushi, sashimi, camarão, camarão e mais camarão. Nem tudo me parecia, de fato, comida oriental, mas estava surpreendentemente delicioso. E aí que no suco de laranja que levei à boca, decidi começar aquela brincadeira de adivinhar a conversa, os contextos e as intenções das outras pessoas. Só que não era a hora do rush e as mesas estavam vazias. Foi quando olhei para a varanda, da área de fumantes, e vi duas senhoras.

Uma era mais tímida e estava de costas pra mim. A outra, ria um riso bonito e escandaloso, que considerei quase vulgar. Eram amigas há tanto tempo que, quando perguntavam, elas diziam: "Ah, nos conhecemos há décadas", para tentar disfarçar a memória que já começava a falhar. Eram, mesmo, amigas - no sentido mais sincero da palavra. Já perderam as chaves juntas e viraram noites na mesa do bar. Foram chamadas de putas, histéricas, insensatas... Inconsequentes! Ora, mas por quê? Que mal há em duas moças se divertindo na noite carioca? E riam, sorriam, gargalhavam relembrando o passado que parecia não ter demorado a passar.

Acobertaram as mentiras uma da outra, falando que iam estudar, fazer o exercício daquele tal professor. Mas, na verdade, passavam o dia todo com seus namoradinhos - era assim que falavam. Quando estavam juntas, era como se o tempo não passasse. Como se fosse só aquele momento, a alegria, o desejo de estar bem, de querer o bem.

E ali, naquela praça de alimentação, daquele shopping, passaram a tarde inteira contando e recontando suas histórias, como se os 20 e poucos anos nunca tivessem sonhado em ir embora.
Saí da desconferência sobre feminismo com aquele pensamento martelando. Tantas meninas controladas por seus pais ou irmãos, tantas mulheres controladas por alguma figura masculina que se acha no direito. Não consigo engolir isso. Quando ouço falar de irmãos que querem controlar a vida amorosa e sexual das irmãs já me da um frio na espinha. E quanto a minha família, posso dizer que eu já discuti muito com meu pai. Na verdade, discuto quase todos os dias. Dois teimosos.

Vou mentir se eu disser que meu pai nunca controlou minha roupa. Uma dia eu queria comprar um short e ele achou horrível. Disse que parecia um balão e que aquelas cores juntas ficava muito brega. Meu cabelo, também. Ele queria que eu fizesse mechas azuis, e não loiras, porque loiro todo mundo tinha. E qual era a graça? Ele sempre quer saber onde eu vou. Sempre. Ele acha ridículo pagar 50 reais para entrar em uma boate sendo que tem rock de graça em algum lugar. Na hora de chegar então, nem se fala. Pra ele, é sempre melhor que eu durma na casa de alguém que mora mais perto do que voltar de madrugada. Nos meus relacionamentos, ele também tentou. Segundo ele, tem vezes que o homem é tímido, e você tem que "chegar" se não nada acontece. Quando eu resolvi fazer Rádio e Tv, ele logo avisou: "Nem sei direito o  que é isso, mas te apoio. Agora, não vai trabalhar naquela bosta de Gazeta não, hein?".

E assim nós seguimos discutindo. Sobre "Paul ou John",  filmes antigos, lugares para sair e, muitas vezes, sobre feminismo. Que ele nunca leu sobre, muitas vezes, confunde tudo e eu tenho que dar uns puxões de orelha, mas que já deu para aprender o básico.

Ele é meu pai e não meu dono. Ele não me controla, ele me ama.
E isso muda tudo.

Embrulhei o livro num pedaço de papel craft, daqueles meio amarelados. Amarrei como se fosse um pedaço de queijo e deixei lá, no pé da porta da casa dela. Não queria impressionar e precisava deixar isso bem claro logo de início. Fiquei olhando de longe, esperando que ela chegasse e desembrulhasse o livro ali mesmo. Ou, sei lá, só pegasse.
Estávamos há tanto tempo sem ser ver. Quanto anos? Não lembro. Não podia deixar que ela pensasse que eu queria amenizar os erros que cometi, a falta que sei que fiz. Se ela pensasse isso por algum segundo, não pegaria o pacote. Não abriria o livro. E ela precisava abrir aquele maldito livro. Precisava.

Acendi um cigarro e fiquei lá, do outro lado da rua, esperando. Me arrependi por alguns segundos - poucos - por não ter um daqueles celulares cheios de coisas estúpidas pra poder passar o tempo. Mas aí lembrei que eu tinha cigarro. Fumei o maço todo. Fazer o quê? São os efeitos colaterais da vida.

Estava quase anoitecendo quando ela chegou. Meu coração doeu como se fosse parar. Ela parecia cansada. Aliás, parecia morta de cansada.



Não, eu não estava só cansada. Eu estava extremamente deprimida. Não havia uma razão específica, óbvia, aparente para minha tristeza. Talvez, fosse o simples e sólido peso da existência. Sentia que piscava como se fosse dormir a qualquer momento. Enfim, estava cansada, também, de fato.

Tirando as chaves da bolsa, tropecei em um pacote. Parecia um pão caseiro embrulhado. Não lembrava de ter pedido nada. Só me restou levar o embrulho para dentro de casa e, bom, abri-lo. 

Deixei as chaves, o casaco, a bolsa e a roupa toda em cima da mesa da sala. Deitei, tentando liberar toda raiva que estava sentindo. "Relaxa, tá tudo bem", pensei enquanto me permitia chorar e expurgar todo aquele lixo emocional. Dormi um pouco.

Acordei e, por uns segundos, senti que tudo estava maravilhosamente bem, mas fui engana pela minha própria mente. Levantei e decidi preparar alguma coisa pra comer, quando lembrei do pacote.

Sentei à mesa e, com uma tesoura, cortei os nós. Era um livro. "Carlos Drummond de Andrade". "Antologia poética". Meu coração doeu como se fosse explodir. Era ele, era do Gabriel. Com toda a certeza da vida, era. Abri e li cada palavra com dezenas, e depois centenas, de lágrimas no rosto. Dizia:

Ana,
meus versos são mais tristes sem você
sou um bosta, mas seguirei te amando
sempre

Sem dúvidas, era dele.
Estava deitada ao lado dele e só conseguia pensar no meu cartão de crédito. Eu tinha que pagar a fatura, eu tinha. Odeio comprar a prazo, porque sempre me embanano. Mas vez ou outra a gente tem que comprar uma jaqueta nova ou um presente de casamento, e esse tipo de coisa abocanha o seu salário.

Fiquei ali, mentalizando a minha rota do dia seguinte. Acordar. Tomar banho. Ir à padaria. Pegar minha bicicleta no concerto. Ir ao banco. Pagar a maldita fatura. E chegar em casa antes do almoço porque minha mãe fica louca quando eu não chego. Só depois de uns dez minutos percebi que ele me acariciava.

Lembro de uma vez, na sexta série, quando o menino que eu gostava sentou na minha frente. Em certo momento, os pés dele encostaram nos meus, e esse movimento me causou choques elétricos tipo pikachu, choque do trovão. Esse tipo de coisa. Eu estava fezendo um dever de história, e eu sou apaixonada por história. Inclusive, enquanto resolvia a questão sobre transição da Idade Média para a Moderna, pensava em um roteiro onde uma estudante de história era mandada para o século XVII, para pesquisar a era dourada da pirataria. Digo isso tudo para dizer que saí desse estudo/devaneio em segundos quando o tênis do tal menino encostou no meu tênis. Um simples toque.

Também teve outra vez, mais recente, que eu estava afim de um amigo do grupo de teatro, e me enchi de calafrios porque ele me puxou pela não para eu não atravessar a rua enquanto o carro estava passando. Pensei até em fingir distração outras vezes para voltar a sentir o “pele com pele”.

Me perguntei na hora o que estava fazendo ali. Ali com aquele cara, que tentava me agradar e chamar a atenção. Acordei muito cedo no outro dia com o despertador berrando. Eu estava com raiva de mim mesma. Embora fosse isso que estivesse parecendo, não estava com raiva da fatura do cartão. Nem tão pouco do despertador.

Tinha raiva de me sentir atraída por um contado não planejado com um tênis, e pensar em cartão de crédito quando uma pessoa real está do meu lado.

Chovia. Mas não era qualquer chuva. Chovia como se o dia estivesse entristecido, angustiado. E ela lá estava, a observar o cair da chuva sobre a cidade, o caminho das gotas em sua enorme janela. De repente, começou a chover de um outro jeito. A água caía forte, dura, pesada. "Chove como se algo grandioso estivesse para acontecer", pensou. Depois riu do que pensou. "Que bobagem, coisas incríveis acontecem a todo momento, sem que seja preciso chover". Pensou mais e acabou duvidando de si mesma, a fim de encerrar aquele devaneio estúpido.

Estava trancada naquele quarto de hotel há algumas semanas. Só abria a porta para receber o café da manhã. Mas, às vezes, esquecia-se de comer. O telefone estava desligado, para evitar as inúmeras ligações. Todos os dias, sua mãe deixava rosas, bolos e coisas do tipo na recepção. Ela nunca ia buscar. Ana estava tentando lidar com a perda de seu pai. Afinal, havia, também, perdido parte de si mesma.

Eles não se falavam fazia cinco anos, quando o câncer decidiu desligar seu pulmão de vez. Ela foi ao seu enterro. Um dia claro, bonito, cheio de pessoas que pareciam estar, realmente, saudosas. Mas não chorou. Pouco antes do final da cerimônia, Ana foi para o seu hotel favorito da zona sul do Rio de Janeiro e pediu o apartamento da cobertura.

Agora, lá estava ela, observando a vida passar, enquanto tentava viver de novo. "Queria ter dito o quanto eu te amava", sussurrou e, logo em seguida, a campainha tocou. Era uma criança. Uma menina, com lindíssimos olhos esverdeados.

- Querida, como você é linda! Onde estão seus pais? - disse Ana.

A menina sorriu, daquele sorriso que faz a gente fechar os olhos. Parecia um anjo. Ana se abaixou e perguntou se ela estava perdida. A menina balançou a cabeça, dizendo que não, e esticou a mão, como se a convidasse para ir a algum lugar. Ana não pensou muito e, encantada pela beleza da pequena que permanecia parada à sua frente, deu-lhe a mão.

Ana olhou para trás, lembrando de que havia deixado a porta aberta. Porém, não resistiu em nenhum momento em seguir os passos da menina. Elas pararam ao final do comprido corredor, de frente à uma enorme e transparente janela, que se estendia até o teto. Ainda estava chovendo. A menina se afastou um pouco de Ana e apontou para fora da janela. Ana sorriu, sentia-se, pela primeira vez nesses últimos dias, feliz.

Quando Ana olhou para onde a menina apontava, viu - ou pensou ver - aquele rosto terno e amável do pai. Pensou sentir o carinho que não sentia há décadas, pensou dizer as palavras que sempre quis ter dito, pensou até não pensar mais. Quando deu por si, estava aos prantos, ajoelhada ao final do corredor. Alguém tocou em seu ombro. Pensou ser a menina, mas assustou-se ao ver a camareira.

- A senhora está bem? Precisa de ajuda? - perguntou, apreensiva, a funcionária.

Ana estava um pouco tonta, não havia entendido exatamente o que tinha acontecido. Correu para o seu quarto e chorou, chorou a alma.

Quando acordou, já era dia. Olhou pela janela e sorriu. O Sol brilhava, como se o dia estivesse extremamente feliz.
Procurei em todos os cantos. Gavetas, armários, caixas, em baixo da cama. Era uma despedida quando eu a usei primeira vez. Uma blusa rosa de botão que lembrava outra época, embora fosse nova. A blusa tinha cheiro de nostalgia e, ao mesmo tempo, tinha o frescor da boa notícia. Não acho que ele se lembraria da blusa. Na verdade, tinha sérias dúvidas de que ele tinha entendido que aquela tinha sido uma despedida.

Encontrei, junto à blusa de “formandos” e ao uniforme de escola, um pôster de banda. De fato, a blusa era tão velha quanto àquelas memórias. Decidi que ia usar como uma homenagem, como um lembrete. Hoje não era uma despedida, era uma chegada.

Fui ao encontro dele me sentindo incomodada. A blusa apertava, os botões pareciam estar meio frouxos, coisa de roupa velha. Não troquei a blusa, fui com ela. Quando encasqueto com uma coisa, não há nada que me tire da cabeça. Eu tinha encasquetado com aquele sujeito. Por mais que os nossos finais sempre devessem ser pontos, eu insistia em colocar dois (ou mais) e seguir adiante. Mesmo que agora os anos tivessem passado com tanta fúria sobre nós.

Quem olhasse para nós no bar, poderia imaginar que se tratavam de dois desconhecidos que se encontravam pela primeira vez. Embora as conversas de outrora estivessem presentes, em algumas horas - eu juro pra você - que parecia que falávamos línguas diferentes. E a blusa continuava e me incomodar.

Eu tentava, com artimanhas narrativas, levar o rumo da prosa para outro lugar. Queria me lembrar daquele que tinha me feito voltar tantas vezes. Mas, por mais que eu vasculhasse, ele não estava. Deus do céu! Eu precisava de ar. E fui. Entrei no banheiro e puxei o ar com toda força e os olhos apertados.

Me encarei no espelho e foi com surpresa e pesar que o observei que a blusa, enigma e lembrete, não era rosa mais. O tempo tinha desbotado sua cor sofisticada, e transformado em um bege qualquer.

Algumas coisas simplesmente desbotam. E uma mera lembrança não consegue sustentar.

Lá estava ela. Parada, a se observar na imagem refletida pelo espelho. Olhava-se, pensativa, lembrando do que as pessoas costumavam lhe dizer quando ainda era criança. Riam e a apelidavam de qualquer coisa que a pudesse fazê-la sentir-se mal com seu próprio corpo. De "baleia" à "bujão de gás". Sorriu, olhando atentamente suas curvas, suas perfeições e imperfeições. Nua, tocou seus seios, suas coxas. Passeou, com os dedos, pelas celulites que a enfeitavam. Sorriu.

Lembrou do dia em que decidiu comer uma deliciosa fatia de torta, numa cafeteria próxima à faculdade. Lembrou dos olhares, dos comentários. Lembrou, também, de como se sentiu triste por isso, na época. Prendeu os cabelos, lisos e negros, e continuou a se observar. Deslizou as mãos pelo rosto e sorriu de novo ao se lembrar dos beliscões que, até hoje, recebe.

Os olhos se encheram de água e as lágrimas caíram, delineando o rosto, até estacionarem no sorriso que permanecia. Ana estava feliz e, por isso, emocionou-se. Sentia-se bem consigo mesma, com seu corpo, com a vida que estava levando, podendo ser quem sempre quis. A alegria a inundou ao perceber que não havia mais dor e que ela havia aprendido a lidar com os preconceitos. Ela, enfim, se amava.

Despertou de seus devaneios, quando Maria, ao acordar, disse:

- Amor, você é linda. Volta pra cama, volta?
Teve aquele dia que fizemos campeonato de “quem come mais jujuba”. E o aniversário surpresa da Carolina. O menino novo que entrou na escola. E a garrafa da Natasha que acabou com todo mundo. E eu terminei o namoro e você conseguiu xingar o cara de trinta nomes diferentes. E uma vez, na festa do pijama, você confessou que gostava do Pedro. E todos cantávamos “maluco beleza” em baixo de chuva no meio da rua. Fomos ao shopping para ver filme, não tinha mais ingresso e passamos o dia rodando por entre as livrarias e na “Americanas”. Lembra que eu fiquei gripada e você fez um gif de espirro? E nós duas saímos com e mesmo garoto sem saber, e causou certa aflição. Mas ninguém gostava dele, rimos então. E você não passou no vestibular, e queria tanto. Eu disse para você tentar mais, afinal, sonho é sonho. E você conseguiu no outro ano, saimos com a galera e foram sorrisos, garrafas e histórias perambulando por todos os cantos. Lembramos do dia em que a Cris brigou com a diretora. E da queda que a Ju levou na gangorra. Corremos pelo pátio da escola feito loucas para matar aula. O objetivo era encontrar com aqueles garotos que hoje, não importam.

Nos desencontramos naquele show.E depois eu tinha que estudar e esqueci de te ligar. E veio aquela festa que você não foi. E eu perdi o seu noivado... E a filha na Raquel nasceu e eu estava viajando. A Carol operou e você ligou, mas não deu pra passar lá. Não podemos nos reunir no nosso famoso “Encontro Semestral”. Veio faculdade, trabalho, namorado, viagem, a vida. Caminhos que andamos, ruas que nos levam.

Nos encontramos na cafeteria aquele belo dia, e era como se tudo tivesse normal de novo. Rimos e escolhemos o mesmo tipo de café. Comentamos sobre aquele seriado que tinha acabado. Quantas noites viramos a noite esperando chegar os episódos, né? Sorrimos. Tudo estava bem. Porque nunca esteve mal.

Ele passou por ela como se não a conhecesse.

Sentada ao redor de amigos, ela ria um riso sereno, alegre. Sentia-se extremamente feliz naquele exato momento em que ele passou. Distraída, repousou o olhar em qualquer canto e, de repente, despertou de um devaneio profundo por tê-lo visto. E ele passou como se tivesse se esquecido dela e, consequentemente, de todo o tempo juntos. Das cartas, dos primeiros olhares trocados, das mãos entrelaçadas em todo fim de tarde. Simplesmente, passou.

Hipnotizada pelo despeito, engoliu o fel que descia seco pela garganta. Não tirou os olhos do rapaz, enquanto ele estava lá, pedindo "um cafezinho, por favor". Fitava-o como quem se lembrava das noites juntos, dos beijos no início da manhã. E, também, das lágrimas, dos medos e das inseguranças compartilhadas nos seis meses em que estiveram juntos. Ela o analisava, absorta, tentando decifrar de alguma maneira seu comportamento. Ajeitou o cabelo, na intenção de dizer que se lembrava dos elogios. Apertou os lábios, como se quisesse anunciar que estava ali, desfiando o passado, sozinha.

Riu um pouco. Um riso forçado, tentando esconder seu estado de pleno desgosto. Mas, ainda assim, olhava-o insistentemente. Encheu os olhos d'água, perdida em seu próprio ressentimento, desapontada com sua própria sensibilidade. E foi aí que ela se lembrou do motivo de não estarem mais juntos.

"Não deu certo", dizia aos amigos e aos conhecidos. Mas a verdade é que o motivo pelo qual não ficaram juntos era justamente este: o esquecimento. Ela começou a se esquecer. Do começo, deles, enfim... do amor. E passou, foi embora como se não o conhecesse.

Ficou pensativa, intercalando sensações. Ora irada, brava. Ora resignada, conformada. Ficou ali por cerca de cinco minutos, imaginando e refletindo. Teve a sensação de que haviam se passado horas desde que ele chegara. Sorriu novamente feliz, por, enfim, ter percebido que eles não estavam mais juntos, porque ela não o queria mais. E isso, de alguma maneira, a satisfez.

Sem perceber, seus olhos ainda estavam repousados sobre ele, que agora queimava a língua no café. Ele a olhou e sorriu. Mas Ana, novamente distraída em seus pensamentos, não notou.

E ele foi embora como se a conhecesse.
Todos os dias Maria passava. O caminho era o mesmo, só a intenção que mudou. A casa não tinha sacada bonita, nem decoração. O motivo era só a intenção. E sobre isso eu falo depois. Vamos falar de Maria então.

De tanto sonhar, quase virou sonho. A realidade era quase sempre chata, ou melhor, não era o que ela esperava. Mas quando é que é? Só que Maria tinha lá razão, pode se dizer. Tinha mais motivos para não, do que para viver. Não parece, se você olhar, mas posso garantir que você não olhou direito. Tanta felicidade assim tinha que ser despeito. E era mesmo.

Um dia ela jurou que não tinha mais coração. Juntou os cacos e colocou no baú. Aquele velho garotão batia na porta e ela dizia: “Não, não e não”. Era mentira, mas ela disse tantas vezes que já estava acreditando. É claro que ainda estava sonhando, mas era um sonho de fumaça. Sempre escapava.

Achou esse moço, e jurou que era ele. Ele também tinha cacos no baú. Ele também tinha sonhos, ainda maiores que os dela. Mas era bom de mais pra ser verdade, Ô! Se era...

E ela continuava passando. Sempre freando o passo, quando passava em frente. Para ver se tinha gente. Nunca tinha, mas ela sempre passava. Pela casa, claro. Eu ainda não disse, mas cá está o motivo. O moço morava na casa, e ela o queria contigo. Queria estar na casa, e esteve. Queria falar com ele, e falou. Mas não era isso que ela queria. O que era, nem ela sabia.

Mas sempre voltava para o mesmo ponto. Não o de ônibus. Mas era lá que estava, quando pensava. Sabe se lá porque pensava em uma ponte, sempre que pensava naquele nome. E pensava muito. Ela o via em todo lugar.

Ela não parecia se importar. Nem com isso, nem com nada mais. Fingia tão bem Maria. Tão bem, que quase acreditava. De tanto sonhar, quase virou sonho. Até o moço acreditou. Eu acho. Não sei dos pensamentos do moço, só dos de Maria.

Todos os dias o mesmo caminho. A ponte, a casa, a ponte.

Ela não queria conhecer a casa, queria morar lá. A ponte, a casa, a ponte. Em baixo da ponte tinha o mar.

Devia ser isso que a fazia lembrar. Ele gosta do mar. Eu acho.

Estava se sentindo extremamente cansada e com uma leve dor no pescoço, na região da nuca. Foi dia de desfile, lançamento da nova coleção de uma grande marca brasileira. E ela foi lá, ser assistente de tudo-quanto-é-coisa e fazer de tudo e mais um pouco. Pegou água, serviu café, assistiu as modelos em tudo o que elas precisaram, enquanto o rádio comunicador não parava de apitar. Tudo isso para, no final do dia, receber seu dinheiro sem um "muito obrigada" como brinde. Não que ela precisasse de um "muito obrigada", mas é que o ar de Vera era extremamente arrogante - e isso a cansava mais do que todas as outras coisas.

Sentou-se na cama e admirou a cidade através de sua janela extravagante. Suspirou. "Preciso de férias", pensou, enquanto se perdia no tempo a observar as luzes e os fluxos de concreto. Tirou os brincos, os sapatos. Deitou, sentindo-se intensamente grata por poder descansar naquele momento. "Preciso viajar", falou. O interfone tocou. Passaram-se minutos suficientes para um elevador chegar ao 14º andar de um prédio.

- Oi, querido - falou, enquanto cumprimentava o jovem apaixonado à porta com um beijo. - Pode entrar, meu bem.

Horas depois, ainda acordada, ela repousava os olhos no rapaz adormecido ao lado. Não que o observasse. Na verdade, ela estava pensando em como tudo em sua vida havia perdido a graça e o brilho que costumava ter. Aquela relação permanecia sempre assim, imutável, fazia longos oito meses - desde que ela havia chegado ao Rio de Janeiro. Lamentou por estar se lamentando, já que o rapaz era, afinal, adorável e um ótimo amante. Lamentou por um momento, mas não por muito tempo.

"Devo estar na crise dos 20 e poucos anos", pensou enquanto fechava os olhos para dormir.

"Existe crise dos 20 e poucos anos?", perguntou a si mesma, abrindo os olhos novamente.

Na manhã seguinte, pediu gentilmente que o rapaz apaixonado a deixasse sozinha naquele dia, pois precisava resolver umas questões. "Ah, umas questões do trabalho", respondeu quando ele perguntou do que se tratava. Despediu-se do rapaz com um beijo, enquanto pensava como ele tinha sido irritante ao querer saber o motivo das coisas, mas logo esqueceu o acontecido. Ligou o computador e abriu o site de passagens aéreas promocionais. Em outra janela, procurou pelas praias do litoral brasileiro. Porto Seguro, não. Praia Brava, não. Itaúnas...

Fechou o roteiro com um agente de viagens conhecido e partiu no mesmo dia, com uma mochila e uma pequena bagagem de mão.

Ela se instalou em uma pousada simples, onde tudo era feito de madeira, dando um ar rústico do qual ela achava graça. Na verdade, ela achou graça em tudo. No chão batido, nos poucos andares, nas pessoas, no ar limpo, no céu azul. Tomou um banho e dormiu. O tempo logo fechou e caiu uma chuva rala durante todo o dia.

O gerente da pequena pousada bateu à porta da nova hóspede logo cedo, para avisar que o café da manhã estava servido e que ela podia ficar a vontade. Era um rapaz jovem, com um sorriso um pouco cansado estampado no rosto, um pouco exausto. Os olhos fechavam enquanto ele sorria.

- Meu nome é Gabriel e pode me chamar pro que precisar, senhorita Ana.

Ela agradeceu, ainda com o rosto inchado de uma noite longa que compensou muitas outras em claro. Foi até à pequena varanda que havia em seu quarto e percebeu que as pessoas saíam de casa já preparadas para ir a praia. Fez o mesmo, colocou uns chinelos e foi comer. Depois do delicioso café da manhã cheio de frutas e pães, acendeu um cigarro e sentou-se em um banco, também, de madeira. Pensava em como tudo, em Itaúnas, parecia ter graça, tudo parecia inspirador. Não sabia se o lugar era assim mesmo ou se era ela quem havia decidido ver dessa maneira. Absteve-se dessa questão e fitou Gabriel, que recebia com o mesmo sorriso cansado novos hóspedes. Um casal.

O rapaz inclinou a mão, como quem sugere passagem, para o casal, a fim de levá-los a seus quartos. Foi neste instante que o olhar de Ana cruzou com o olhar de Gabriel. Ele sentiu que Ana dizia alguma coisa, qualquer coisa que ele não sabia decifrar. Ela não intencionava dizer nada, apenas o olhava com um forte desejo de ver um sorriso mais gracioso no belo rosto do rapaz. Queria achar graça nele.

Depois de um dia andando acompanhada de seus poucos pensamentos pelas belíssimas e extasiantes dunas de Itaúnas, Ana voltou para a pousada, que parecia estar deserta. Gabriel estava sentando no banco de madeira, fumando um cigarro. Ao avistá-la, apressou-se logo para apagá-lo.

- Ei, ei. Eu ia pedir um trago - brincou, Ana, sorrindo.
- Ah, coisas do trabalho... - Sorriu aquele sorriso.
- Você não parece tão despreocupado quanto todas as outras pessoas desse lugar. Aliás, onde é que estão todas as pessoas desse lugar? - disse Ana, como quem brincava com um conhecido.
- Foram pro forró. Itaúnas é a cidade do forró e hoje tem festa em vários lugares da vila.
- Hm, entendi.

O silêncio durou algum tempo. Ana olhava o recente anoitecer da vila, que chegou com um céu estrelado, cheio de graça. Sorriu, sentia-se feliz.

- Você é dono dessa pousada? - perguntou Ana, ainda em pé, olhando para o céu.
- Não, meu pai é.
- Ah, que legal. E ele fica aqui, também? Acho que não o vi.
- Não, não. Não fica. - tragou o cigarro.

Ana sentou-se ao lado dele, colocando um cigarro em seus lábios naturalmente rubros. Gabriel a observou. Seus movimentos pareciam mais lentos do que os das outras pessoas, ela fazia tudo com muita graciosidade. Ele a achou bonita, atraente, mas mais do que isso, ele a achou inspiradora. Ela tragou várias vezes, sem nada dizer, apenas sorrindo ininterruptamente.

- Tá tudo bem no seu quarto? - Gabriel perguntou, fitando-a.
- Está, sim. Vocês são ótimos - respondeu, olhando em seus olhos, mas logo voltou a admirar o vasto firmamento sobre suas cabeças. Ele permanecia a observá-la.

Agora, admirava-a.

- Quer ir lá ver se preciso de alguma coisa? - perguntou Ana, sem tirar os olhos da enorme Lua que iluminava mais uma noite em Itaúnas. Ele ficou em silêncio por um momento, enquanto acendia outro cigarro, sem tirar os olhos de Ana. Ela gostou de ser observada, sentia-se, de fato, admirada e não via problema em ficar ali por alguns instantes.

Depois de muito tempo sem que nenhum dos dois nada falasse, Ana suspirou, devolvendo o olhar de Gabriel, como quem pedisse uma resposta.

O rapaz  respondeu, com um largo sorriso que o deixou irradiante:

- Quero!
Acordei com um sobressalto. Ela estava me encarando. Como quem desafia. Como quem pede satisfação. Com seus olhos de cigana, obliqua e dissimulada. Não sabia que era obliqua. Mas dissimulada eu sabia. A Palavra sempre me persegue. Mas como somos velhas conhecidas, não entro no seu jogo tão facilmente.

Me levantei, escovei os dentes, tomei banho, segui minha rotina deixando ela de lado. Mas outra coisa que sempre está na minha rotina e o ato de estabanar-me. Sempre deixo alguma coisa cair, tropeço, erro o que ia pegar, e por ai vai.

Numa dessas, abri a gaveta com força demais. Caiu tudo que estava dentro. Um pente velho, um óculos de sol, a caneta que eu estava procurando e um diário bem velho.

Guardei a tralha toda e me demorei no diário. Ele estava recheado. Muitas cartas, laços de fita, convites, grampos, papeis de bala, fotos e tudo mais que eu achava importante na época, e que tinha colocado ali dentro.

fui folheando o diário com cautela para não deixar o apanhado de coisas caírem. Ai lá estava, escrito com meu garrancho habitual: “ As pessoas me perguntam que profissão eu quero seguir, eu digo várias coisas. Jornalista, atriz, Diretora… Mas nunca digo escritora. Nunca falo." Era só isso, não tinha explicação, não tinha "por que", nada. Mas acredito que ser escritora era algo tão distante pra mim. Uma palavra tão forte e ao mesmo tempo tão rasa, que eu não conseguia dizer.

Mas a Palavra continuava do meu lado, me cutucando. Me pedindo uma resposta.

Se pudesse dar uma, diria que não sou escritora mesmo. Sou boa de prosa. Contadora de história. Porque a prosa pra mim, é muito mais do que um paragrafo alinhado em baixo do outro. No que um começo meio e fim com um bom clímax. A prosa ta na rua. Nas pessoas que conversam no ônibus, nos casos contados pelos amigos, na propaganda de hidratante, dentro de casa.

Para mim escrever é mais do que formar frases, pieguices a parte, me considero escritora quando me preocupo menos com as mazelas da vida, por enxergar nelas, a possibilidade de uma bela história a ser escrita.

Satisfeita Palavra? Posso dormir em paz?
Não, claro que não. Você sempre quer mais.


Quem foi que disse que poesia é o contrário de prosa? Quem, inocentemente, afirmou que elas se contrapõem? Não sei quem foi que começou essa calúnia. "Lugar de poesia é na calçada", cantou o maldito compositor. É, sim! Lugar de poesia é nas esquinas ébrias com seu poder de sedução; nos becos sombrios, no asfalto batido, velho... É no ônibus lotado, no entardecer mais cedo, sereno. No fim de expediente cheio de conversas numa mesa de bar. Ah, no me perder nas horas, achando que o fim nunca chegará...

Lugar de poesia é, então, no levantar do punho, no dia da eleição. É no tropeçar no escuro, no levantar sem chão. É na feira agitada, com peixe baratinho, maracujá e limão. É no chegar em casa, no abraço apertado, no ver um filme bom. E, ai meu deus, por que não pode ser também na prosa, assim mesmo, quebrando a rima respeitosamente, sem se preocupar? Na prosa do dia a dia, naquele papo gostoso com a vizinha, naquela conversa fina, rala, dentro do elevador. Ah, vai, por que não?! Naquele conto do porteiro, nos casos da tia que perdeu os documentos na padaria e, por sorte ou por azar, no outro dia estavam no mesmo lugar.

Enfim... Insisto, teimosa: há, sim poesia na prosa. Nas palavras que dançam para lá e para cá, tentando nos contar aquela crônica, aquela lição que a gente esqueceu de aprender com a poesia da calçada. E apelo pro desejo de liberdade com o qual todos nascemos: pra que se prender nessa objetividade que é ter que nomear e classificar todas as coisas? Talvez, possamos dizer que é uma crença minha, caso vocês discordem muito de mim. Para que, assim, eu possa me apegar a esse meu credo e, como uma poeta ferrenha, dizer que, bom, eu acredito muito que a poesia está, também e inquestionavelmente, na prosa!

moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
- leminski