Índio da etnia Krenak as margens do Rio Doce - Fábio Braga
Pequenino eu era quando entrei no rio pela primeira vez. Não lembro ao certo mas minha mãe, essa lembra bem. Diz ela que eu sorri. Que não achei a água fria. Que não estranhei a terra molhada. Do rio eu gostei. Mas tive alguns problemas. Não demorou muito, na aldeia já sabiam: Esse não é dos mais fortes. Pobre desse menino. E não era mentira. Eu não conseguia correr muito. Cabeça rodava e o ar parecia quente. Então quando os outros estavam pulando e correndo pra lá e pra cá, eu estava aqui. Com o pezinho no rio.

Ao lado, no rio, quase sempre estava minha mãe. Trançando o cabelo da minha irmã, ou limpando peixe. Ela dizia que o indío não podia viver isolado, que tinha que ver o mundo ao redor, mas que tem certas coisas, que a gente tinha que manter. Pescar o próprio peixe era uma delas. Era um sinal de respeito. Pelo rio e pelo peixe.

E assim eu pesquei. Já que na beira do rio estava, eu continuei. Eu tinha cuidado pra pegar a isca certa. Cuidado para não matar o peixe na hora. Caso ele fosse filhote, tinha que devolver. Mas não adiantava devolver se ele não fosse sobreviver. Tudo pensado. Eramos nós:a tribo, a terra, o rio e o peixe, parte de uma coisa só.

Quando acordei naquele dia, tentei botar a culpa em mim. Que meu corpo, que já não me obedecia, tinha passado também para os meus olhos sua fraqueza. Não podia ser verdade a água ter virado lama. Não podia ser verdade os peixes fora d’água sem ninguém pescando. meus irmãos já estavam com paus e pedras nas mãos. Iam para a ferrovia. Eu não disse nada. Mas meus olhos disseram mil palavras de apoio. Já que não tinha forças, mem no corpo e nem na cabeça, fui para a margem.

Olhando pra trás, eu vejo que pus os pés no Rio Doce, e acho que nunca tirei. Não como Narciso que deslumbra a própria imagem. Esse homem que me olha nos olhos não sou eu. É o mesmo que tira minhas terras, mata meus deuses, diz que o rio não é meu. Esse é o homem que crava meus pés nessa lama de chumbo e sangue que nunca me pertenceu. Estavamos mortos. O peixe. O Rio. E de muitas formas, eu.

Agitação ao máximo, tudo preparado e todos empolgados. Para os pais, orgulho, satisfação. Para nós formandos? Ah, as melhores coisas possíveis. Enfim o alivio de dizer estamos formados.

Barbara Gobeti Vicente

Formatura, uma festa para comemorar o conhecimento.

Gustavo O. Azevedo.

Carro sai quase voando de casa e se depara com um engarrafamento, na hora de pegar um diploma, tropeção e choro.

Eric da Silva Muniz

Em um dia tão importante, tudo da errado. O pneu fura, congestionamento, acabo chegando atrasado.

Júlio Milani

Então está combinado. Às sete começa. Sete, sete e meia, oito, dez e nada mais.

Gleicy Kellen  Benevides Araújo 

Uma festa não festejada. Um sonho não vivido. Ela chegou, e dez minutos depois se foi.

Ana Carolina Araújo

Coloquei a beca azul,e pela primeira vez na vida senti que estava pronto para passar de uma fase para outra. No carro, a caminho da formatura, percebi que deus também achava isso.

Juliana Rodrigues Sayer
Só eles sabem como foi difícil chegar ao fim. quatro anos se passaram e uma noite recordaram, agora com o diploma na mão, choram  por ter que se despedir.

Shayna Da Silva Pinto

Para chegar até aqui, de muita  ajuda precisei, quatro anos se  passaram,  com o diploma na mão, enfim chorei.
Layla Bernardi  Caprini

Olho ao redor vejo pessoas que conheci, convivi e aprendi a amar. Sinto-me com dever cumprido. Mas há um vazio em meu coração. Para onde todos eles vão?

Mariana Grillo Vetorazi

Toda minha vida foi um tédio. Eu era um menino de 1,65, gordinho e péssimo em matemática. Assi minha vida foi um sofrimento, não via a hora de me formar. Assim veio o grande dia fiquei sabendo que tinha passado, que estava livre. Vim aos prantos cai em mim com os olhos cheios de lágrimas.

Steven Olivares

Recebi meu canudo das mãos enrugadas do meu diretor e em minha cabeça era como se recebesse meu primeiro sabre de luz entregue pelo mestre Yoda para uma grande Jornada.

Vitório Baungartem da Silva

Adeus a todos alunos e professores que nunca gostei. É de imenso prazer e alegria dizer que odiei essa turma da qual passei 4 anos juntos.

Joivam Martim Decoti Jr.

Em minha formatura vi vários gnomos, uns com gorros azuis e uns com gorros vermelhos. Mas percebi que era um sonho. Um sonho que eu não estava me formando.

Vitor Liber

Tudo acabou naquela formatura, esquecer de todos os rostos e quem sabe, em outra vida, revê-los.      
Lucas Guio

Jovens, não muito ansiosos, subiram ao palco, diante de todos receberam um papel que traçaria o destino de suas vidas.

Matheus Reis Ribeiro.

O choro escorre dos meus olhos,em cada gota uma lembrança. Saudade será imensa dessa minha eterna juventude.

Gabrielly Costa dos Santos

Coração bateu mais forte da hora de subir no palco. Mas acalmei ao olhar para o lado, ela estava lá, pronta para me amar.

João Vitor da Silva Luzia

Estava indo para o Salão de Festa, quando vi que lá não era bem vindo.

Bruno Vaz Silva.

Todos estavam dançando sem se importar se a festa estava para acabar como todos nós.

Elio Mulinari Marvilla

Tanto esperada, enfim chegou, será que é verdade? Não importa, acabou!

João Vitor de Souza Ellyan

Estava indo para o Salão de Festa, quando vi que lá não era bem vindo.

Bruno Vaz Silva.

Estava na formatura, todos felizes. Meu irmão vem até mim chorando. Algo tinha acontecido com a minha mãe.

Paulo Cesar

Onde todo o peso se resume, até onde suportou para comemorar a saida e relembrar a chegada do lugar onde conquistou territórios em si mesmo,

Vitor Hugo Teixeira Santos

Centenas de chapeis azuis escuros de forma quadrilátera no céu, tudo acabou… Tudo acabou de começar.

Alice Cavallini Nascimento

Quatro anos pra uma noite. Uma noite pra  vida inteira.

Ana Flavia Lorenzoni

A roupa mais bonita para o último dia. Nem sei se a felicidadeé maior do que a tristeza da saudade.

Ester Garcindo

Mesmo Não sendo o mas adorado, fico feliz por por todos estarem se formando, e principalmente por não ter que olhar para a cara de alguns.

Chororô por todo lado, são quatro anos em uma noite recordados. Cada palavra que for dita, será uma recordação para as nossas eternas vidas.

Lays Tavares

Como se comemorar a saída de um lugar que te deu algo tão maravilhoso?

Matheus dos Santos Machado

E em meio de tantos sorrisos, meu olhar entristecia, imaginava que nunca mais os veria. E assim se fez.

Tatiana Campos

Foram logos quatro anos e o último  dia tão esperado chegou e com ele os amigos, os professores e a única coisa que nos deixou foi a saudade.

Caroline Mattos

Era formatura do 9° ano muito legal, foram todos para um sítio a 20 km,brincamos, corremos, nadamos, mas eu achei muito mais legal pois fiquei em casa.

Matheus Assis

Com as janelas do carro abertas, mais uma vez ouvindo aquela música, os olhos marejados, tentando se orgulhar da sua formatura.

Luiz Henrique Miranda Matos

E com lágrimas nos olhos , um sorriso no rosto, abraçada com seu diploma, lá estava ela, na lápide do seu pai, contando sobre sua formatura, afim de orgulhar-lhe.

Thamillys Branbati Saraiva

Um noite tão linda que parecia irreal. Música, dança, amigos e diploma. Acordei e estava sobre um travesseiro de lágrimas.

Alice Souza


Resultado da oficina de microconto ministrada por Juane Vaillant no Insituto Federal do Espírito Santo, campus Piúma, para os alunos do 1° ano de Pesca Matutino

Só terminar de regular o obturador e pronto. Click. Não, não. Vamos de novo. Click, click, click, click. Essa merda de profissão é superestimada.

- Então, você é jornalista?
- Não, agora trabalho como fotógrafo, na verdade.
- Ah, que incrível. Será que posso ver algum dos seus trabalhos?

"Não, não pode", pensava. Mas dizia que podia, óbvio, claro, com toda a certeza. Porém, nunca chegavam a ver. Era quase um disfarce que eu utilizava pra impressionar mulheres 10 anos mais novas do que eu nas mesas de bares ou bancadas de botecos.

Fotos de cachorro. De fato, a fotografia é superestimada em todos os sentidos. Especialmente, a profissão-fotógrafo. Culpa dessa coisa que inventaram chamada "olhar fotográfico". De alguma forma, se você é fotógrafo - ou pelo menos acredita fielmente nisso - as pessoas vão sempre pressupor que você tem o tal, o desejado, o imprescindível "olhar fotográfico".

Como seria o "olhar fotográfico" de quem faz fotos de cachorros para uma coluna sobre animais de um jornal de bosta? Não sei. Nos primeiros anos, eu até conseguia conciliar alguns projetos bacanas (eu achava) com meu expediente na redação.

Fotografei mulheres nuas que tinham acabado de vencer o câncer de mama. Depois, durante uma passagem pela Bolívia, fiz uma série de fotos sobre o cotidiano de uma comunidade indígena. E, claro, fiz fotos clichês no deserto de sal que todo mundo falou que eram incríveis e maravilhosas. Já eu não as achei muito diferente das que encontrei numa busca rápida pela internet.

Eu, como basicamente todo fotógrafo apaixonado, acreditava que meu trabalho poderia, de fato, causar mudanças significativas no mundo. Não sei em que momento ou o que desencadeou o início do meu quase-desprezo pela fotografia. Eu achava que, com o tempo, o trabalho na redação seria menos massante e eu poderia, cada vez mais, dar espaço e tempo para minhas ideias e projetos pessoais.

Acontece que eu me enganei. Quanto mais eu me disponibilizava a fazer horas extras e a cobrir esse ou aquele fotógrafo que estava doente ou de licença, menos vontade eu tinha de me dedicar àquelas ideias repentinas que surgem bem no meio do caos urbano. E também eu tive um filho. Helena engravidou quando eu tinha 32 anos. Depois de cinco anos juntos, parecia que era a hora de isso acontecer.

E aí a minha relação com a fotografia desandou de vez.

Juane Vaillant

Tinha essa menina e ela era tudo menos jeitosa. Não sabia sentar direito, se portar, comer direito, nada. Falava muito. E falava alto. Ria quando dava vontade e chorava na mesma proporção. Era um escândalo. Não tinha modos.

Para piorar gostava muito de ler. E questionava tudo e todos. E isso não é coisa de menina. Menina tem que que ser educada, claro. Mas não muito. Não a ponto de ser inconveniente. Menina pode questionar, até que as vezes pode. Mas olha o tom. Sem deboche. Sem palavrão. Isso é coisa de homem.

Ela até que gostava de coisas de menina. Boneca. Vestido. Maquiagem. Mas isso ia por água abaixo quando mostrava sua coleção de tazos ou as revistas sobre Dragon Ball e Pokemon. As meninas podiam gostar dessas coisas. Mas ser fã assim era para os meninos. Até os meninos, da sua idade, não aceitavam muito. Achavam que não era coisa de menina. E achavam irritante ela saber mais do assunto do que eles. E até hoje eles acham isso um pouco.

“Pra ser bonita tem que sofrer” Diziam as outras, mais velhas. Mas essa pequena não gostava de regras. Nem de sofrimento. Não ia emagrecer só por emagrecer. Não ia cortar o cabelo só por cortar. Não ia comprar roupa nova só por comprar. Ela poderia até fazer tudo isso, mas na hora que isso parecesse uma boa ideia. No momento que ela quisesse.

 A menina cresce e gosta de beber. Não liga de ficar com muitos caras, não volta cedo, não tem vergonha de falar sobre nada e odeia muito dar satisfações. Não liga também para o fato de quase nunca namorar sério. Para ela isso é como uma viagem para o exterior. Pode ser massa. Mas você não precisa ir pra um pais de merda só pra dizer que foi. E isso é ruim pra ela. Não é o que as pessoas esperam e elas esperam muito.

Não que as vezes, todas essas regras e criticas não a abalassem, não a deprimissem. Claro que sim. Ela era menina e não robô. As coisas que passavam por ela, podiam não derrubá-la. mas ela envergava.

Mas um dia, entre uma queda e um salto, ela  encontra  o termo “feminismo” e se apaixona. Começa a negar tudo que pensava, que era, que tinha. Desfaz amizades, começa outras instantâneas, devora livros e vai as ruas.  Se abre por inteiro, comete uma porção de erros, até se encontrar.

Até saber, que não existe modelo de mulher. Nem no machismo e nem do feminismo. Não existe formula, não existe resposta certa. Existe apenas a sua vontade, aplicada com o respeito ao outro e a você mesma. Que você pode gostar de maquiagem e de filme de guerra. Fazer chapinha e não depilar a perna. Ter seus momentos de bela e seus momentos de fera.

A garotinha enfim, torna-se uma mulher. Sem precisar tomar jeito. Seguindo seu ritmo, seu passo, assim. E embora eu seja ela, esse texto não é sobre mim.

Estou com sono. Não consigo entender, o tempo todo ele me acomete, como se eu fosse um alvo fácil. Não me preocupo nem em saber se estou bem. Quando me perguntam, a resposta é sempre a mesma: "Estou com sono".

Tive aquela sensação de que estava caindo e acordei. Nunca me senti tão viva. Estou brilhando no escuro. O meu sol é a lua. Não há espelhos em toda a cidade. Vejo minha luz nas gotas da chuva. Ouço uma música. Sou a musa deles todos. Eu posso dançar.

O despertador me chama loucamente avisando que é hora de acordar. E o sol insiste em me fazer abrir os olhos. Sono, antes de tudo. Antes de rir, do café, do banho, de mim. Não faço mais nada além de esperar cada segundo passar até poder dormir.

No meu quarto tem uma janela enorme. Posso ver toda a avenida e quem passa por ela. Ontem, às três horas, chovia e me vi dançando, mas não era eu. Era ela, como uma ninfa.

"Alô?". Era o analista cobrando a conta. Não sei por quê ainda compareço a porra das sessões. Sempre a mesma coisa. A rotina me dá sono.

- O que fez entre 2h e 5h de ontem?

- Sou inocente, delegado.

- O que fez?

- Eu dormi.

Nada demais. Ele me trata, na maior parte do tempo, como um criminoso que não quer confessar. Sou importante. Ele me estuda.

Hoje eu dormi com a sensação de que seria uma ótima noite. Acordei e, no teto, estava escrito "Brilhe ou morra!" em néon. Chamei a polícia. Nada aconteceu. Falaram que eu estava enlouquecendo. Tanto faz. Voltei a dormir.

Estou enlouquecendo, mesmo. Estamos, querido. Eu sou a puta deles, mas estou cansada. Estou, verdadeiramente, cansada. Me perdoe.

Ontem eu me vi pulando da janela. Mas não era eu, era ela, na minha enorme janela.

Hoje eu morri.

Juane Vaillant

Quando pequena, foi ao teatro com sua irmã mais velha. Para a irmã, era só um pretexto para encontrar com o namoradinho. Para Aurora, uma revolução. Tudo impressionou a pequenina. O som, as pessoas concentradas, os atores e as luzes. Sim, ela amou as luzes. Eles decidiam quem era visto. O que era importante.

Decidiu comprar um Holofote para si. Um bem grande. Pediu um aos pais, de presente de aniversário. Eles pesquisaram, tentaram, voltaram. Nada era satisfatório.  A mãe então, pensou na solução. Disse para Aurora: “Filha querida, encontramos algo bem melhor. É um holofote invisível. Ele vai ficar aqui, em cima da sua cabeça. E basta você piscar três vezes que ele vai acender. Você não pode ver a luz, porque ela está de cima. Mas todo mundo pode ver. Alias, quando estiver ligada, ninguém conseguirá tirar os olhos de você.” Aurora adorou!

Embora algumas pessoas dissessem que o que era invisível não existia, todos viam seus argumentos caírem por terra quando aurora piscava os olhos e depois sorria. Andando pela escola, pracinha ou casa dos amigos... Era notável que alguma coisa tinha. Um quê de estrela, um quê de rainha. Ela brilhava e iluminava o ambiente. Não olhar era difícil, realmente.

Foi crescendo e percebia, que a luz as vezes atrapalhava. É que Aurora as vezes, não conseguia desligar. Em lugares mais calmos ou tristes, ela era tão vivível, que não era bem vista. Tinha que apagar. Alguns garotos que passavam por sua vida, também não conseguiam lidar. Eles eram muito banquinho-e-violão e ela era um espetáculo com gelo seco e telão. Mesmo que nem sempre entendesse de cara, seu holofote era seu presente mais querido, e sem ele, ela pouco teria conseguido da vida. Continuava.

É claro que em um palco ela foi parar. Era o caminho certo, não tinha como negar. Os críticos diziam, que, não sabiam como, mas mesmo quando não havia luz, ela reluzia. O palco parecia até pequeno. O teatro parecia quente. Seu nome e sua luz ultrapassavam seu corpo.

Eu conheci Aurora muito tempo depois. Ela não estava no palco, estava sentada ao meu lado. Eu sabia que ela tinha criado aquele espetáculo. Ela agitava os braços, sorria, cantava junto.Mas não estava em cima do palco. Era belo e era triste. Quem estava perto dela, vez ou outra, lançava um olhar. Era inevitável, embora bem menos constante do que outrora.


Por uns segundos pensei que a bateria tão longa do holofote tinha enfim chegado ao fim. Mas olhei mais atenta. Estava ali. Era um outro tipo de luz, guardada para poucos. Não em cima da cabeça, mas dentro dos seus olhos. Sorri.

Eu conheci a tristeza há muito tempo atrás. O nome dela é Sara Dias Guimarães de Andrade e ela morava há duas quadras da minha casa. Eu tinha sete anos quando a professora pediu a atenção de todos para apresentar nossa nova colega de classe. Sara Dias Guimarães de Andrade. Nunca tinha ouvido um nome tão comprido.

Sara gostava de brincar sozinha e de passar boa parte do tempo fazendo rabiscos num caderno com que vivia abraçada. Nunca tive muito interesse em conhecer Sara, na verdade. Eu preferia correr e jogar bola e me sujar na grama e me ralar na calçada de concreto.

Um dia, minha mãe disse que iríamos visitar o meu avô. Eu não queria ir, porque os garotos da rua inventaram de andar de bicicleta na pracinha naquele exato dia. Mas ela sabia como me convencer e prometeu que voltaríamos antes do anoitecer e, assim, me deixaria ir brincar com os outros. "Sendo assim, sim", lembro de ter respondido e arrancado algumas risadas dela.

Quando cheguei, meu avô estava sentado, solitário, no fim da sua enorme varanda. Me deram maçã e depois refrigerante. Perguntei se tinha como assistir algum desenho animado na tevê, mas parece que não dava pra fazer isso.

"Querido, vá falar com seu avô". Achava chato essa coisa de ter que fazer tudo o que me pediam, mas já estava acostumado. Fui até o velho que balançava suavemente em sua cadeira. Parecia confortável e carregava um leve sorriso no canto do rosto. Ele me perguntou se estava tudo bem, se eu estava sendo bonzinho, se eu estava com saudades. Balancei a cabeça, querendo dizer sim a tudo, mas sem, contudo, dizer uma palavra.

E foi aí que ele começou a chorar. Na época, poucas vezes tinha visto um adulto chorar. Ainda mais assim, tão sinceramente, como quem queria ser visto. No alto dos meus oito anos, é claro, me reservei o direito de não entender nada e voltei para o meu copo de coca-cola.

Na volta, insisti para que minha mãe me deixasse brincar um pouco no parque da pracinha. Fui direto para o escorregador e, quando terminei de subir a pequena escada, avistei os cabelos bagunçados de Sara. Brincava sozinha com alguns baldes na areia. Sorria e parecia estar feliz, imersa no seu mundo solitário.

Sem desgrudar os olhos de seus dourados cachos, sentei para escorregar. Nesse instante, os olhos de Sara encontraram os meus. Ela sorria, mas dizia alguma outra coisa no olhar, alguma mais profunda, mais dolorida. E, então, como num passe de mágica, pude entender o que tinha acontecido.

Meu avô estava morrendo.

Corri de volta pra casa e chorei muito. Abri um berreiro, como a criança que era. Não entendia muito o significado da morte, nem o que isso significaria pra minha vida, mas de alguma forma o olhar de Sara me fez perceber exatamente o que eu estava sentindo. Aqueles foram os meus únicos segundos com ela.

A lembrança do seu olhar ainda me norteia sempre que preciso.

Juane Vaillant

Estava frio. Muito frio. Ela odiava sentir frio. Uma das suas melhores e maiores lembranças da adolescência era sair da escola com os amigos, já com o biquíni por baixo do uniforme e cair no mar. As casas da redondeza cheiravam a sal. As pessoas não tinham essa preocupação de estarem sempre arrumados, sempre polidos, sempre discretos. Muito se fala sobre a organização europeia, mas ninguém se pergunta: “a que preço”?

Catharina sentia saudade do Rio como se ele fosse um parente. Um amigo querido. Um amor mal resolvido. Lembrava de suas ruas e cores e  seus cheiros e seus pores do sol. E dos jogos de futebol, claro. Dos de praia, quadra, peladinhas na rua, e o estádio. Os estádios que traziam a história ali, pregada nas paredes.

No velho mundo as coisas pareciam muito novas. Talvez porque seus olhos estivessem desacostumados, talvez porque a onda das restaurações tivesse batido muito forte, o fato é que não parecia orgânico. Aos olhos dela, não parecia genuíno. Ela fez parte da Raça Rubro-Negra desde que se entendia por gente. Dia de final de campeonato ou de clássico, como fla-flu ou flamengo e vasco era quase uma procissão. As pessoas levavam aquilo a outro nível. Não é que o time fosse uma espécie de religião, como era para os ingleses. É que no Rio, time, religião,entretenimento,  família, virava tudo uma coisa só.

Depois de um mês pensando onde ela poderia ir para passar o tempo, decidiu que ia ao jogo. Muitos diziam que ela ia amar, já que gostava tanto de futebol. O Manchester United tinha uma grande tradição e uma torcida enorme. Mas Catharina achou irritante.

Irritante o fato dos ingleses se acharem realmente “os donos da bola” e irritante a crença dos torcedores do United de que aquela torcida era a maior e melhor. Saiu do jogo desolada. Achava que ia se sentir melhor. Achava que ia se sentir mais perto de casa. Andando em meio a aglomeração, pensava nos outros jogos que já tinha ido. Queria resgatar equela emoção. Eis que ela avista, como uma miragem, aquela camisa. Não pode nem acreditar. Dentro do mar vermelho de torcedores do Manchester United, aquela camisa preta com uma listra branca se destacava. Como ela tinha odiado aquela camisa. Aquele time. começou a andar rápido , esbarrando em todo mundo, tentando alcançar o dono da camisa.


Chegou perto. O homem, que devia ter mais de trinta anos, também pareceu notá-la. Ela usava sua camisa oficial do flamengo. Os dois se encararam por um momento, até que Catharina perguntou, em português mesmo: “Você é vascaíno mesmo ou só um inglês idiota com a camisa?” O homem riu de canto. “Aqui é Força Jovem!" Catharina abriu o sorriso mais largo que tinha dado em muito tempo. Ele sacudiu a cabeça afirmativamente. E,como velhos amigos, se abraçaram. Um abraço forte e sincero. E  o abraço foi o mais perto de um pedacinho de casa que ela teve durante muito tempo.

Ela acreditava que a probabilidade de as coisas darem errado era sempre maior. E atribuía a culpa dos seus fracassos ao destino que, pensava, parecia nunca querer vê-la feliz. Sentia falta do pai e guardava certo rancor de deus por tê-lo levado tão cedo. Nenhum pai deveria morrer antes dos 50. Era o que dizia quando falava sozinha, como se fosse conversasse com os céus.

Ana detestava que a chamassem de pessimista, apesar de ser frequentemente rotulada dessa forma. Para ela, os otimistas eram só inocentes. Mal sabiam que, provavelmente, as coisas dariam errado e as pessoas seriam babacas quando deveriam ser compreensivas. Pelo menos, era isso o que a vida tinha mostrado para ela até então. Ou melhor, era só o que ela conseguia enxergar.

Adorava ouvir “Natasha” do Capital Inicial, porque foi aos 17 anos que ela fugiu pela primeira vez de casa. “Era Ana Paula e agora é Natasha”. Usava coturnos pretos e uma maquiagem carregada nos olhos. Fez sua pequena mochila e, sem deixar algum aviso, saiu de casa. Ficou algumas noites indo de bar em bar, reconhecendo amigos e pedindo cigarros a desconhecidos.

No quarto dia, uma amiga se compadeceu e decidiu lhe dar abrigo. Na noite seguinte, porém, seus pais apareceram para buscá-la. Guardou rancor de Flávia, a amiga que a delatou, e nunca conseguia esquecer esse nome. Sempre tinha alguma Flávia em sua vida.

Ela lembra que levou uma surra do pai e, engraçado, lembrou disso com certo afeto. Agora, quase vinte anos depois desse surto adolescente, não tinha de onde fugir. Há tempos não reconhecia seu lar em nenhum lugar, então… fugir do quê? Era como se vivesse em uma eterna fuga.

Olhou seu pequeno apartamento e notou que parecia mais bagunçado do que o normal e, deixando a guimba de cigarro no cinzeiro da janela, começou a arrumar a cozinha, depois o banheiro e, finalmente, o quarto. E o disco do Capital continuava tocando. Era um acústico da MTV.

Exausta, sentou-se na cama e tentou lutar contra aquele choro contido que quase a agredia precisando sair. Rendeu-se quando começou a tocar “Tudo o que vai”. Talvez, porque naquele agosto seu pai, se estivesse vivo, faria 62 anos. Talvez, por ele ter morrido uma semana após o episódio da fuga. Talvez, por ter sido ele quem lhe deu seu primeiro disco do Capital. Talvez, por tudo isso, Ana não fosse, de fato, pessimista. Talvez, ela só sentisse saudade.

Todos os dias eu acordava na esperança de que ela tivesse desaparecido. Abria os olhos lentamente e olhava para os lados. Respirava aliviado por um segundo ou dois. Mas lá estava ela. Me olhando nos olhos.Sem medo,sem pestanejar. Eu tinha medo. Eu vacilava.

Todas as pessoas pareciam saber quem ela era. Não sei se alguém tinha a conhecido tão a fundo quanto eu. Mas eu tinha certeza que ninguém podia vê-la. E isso era o pior. Todas as vezes que eu recusava um convite para uma festa, que deixava de ir trabalhar, que me trancava em lugares inusitados como banheiros de loja ou carros alheios, alguém me perguntava “porque você fez isso?” Eu dizia que era por causa dela.

Eu tinha medo. E tinha nojo. Mas o problema, é que ela era minha. E eu tinha que conviver com isso. Sempre fui do tipo que joga responsabilidades nas pessoas. Que não assume seus atos, que joga para o alto. Eu tratava com sarcasmo e displicência tudo o que parecia ser sério demais, importante demais. No inicio, as pessoas achavam isso engraçado. Como um traço na minha personalidade, um tempero. Mas eu não sou um personagem. Na vida real você não gosta de conviver com o Coringa. Com o Jesse Pinkman. Com o Malfoy. Comigo.

Não que eu me considere um vilão. Não que eu considere todos esses caras vilões. Mas isso só é interessante na ficção. As pessoas pensam que dão conta, mas não dão. Eu pensei que dava conta também. Eu criei, pouco a pouco, em banho maria, toda essa fama, essa arrogância, essa armadura. E quando eu convenci a todos, eis que ela apareceu. Para me bater na cara. Bater de frente. Nunca pelas costas como eu fazia.

E dia após dia eu ficava mais fraco. Mais incapaz. Mais desarmado. Ela me encarava. E eu virava os olhos. Embora eu soubesse, no fundo, que nunca iria escapar.

Não era a Morte. Mas a Culpa ia me matar aos poucos.

Eram 2h40 e eu tinha certeza de que ela iria aparecer. Já tinha passado um café bem forte, pois sabia que lhe agradava o paladar. Peguei uma xícara e deixei que o som do noticiário me fizesse companhia. Pra mim, quando a madrugada chegava, o silêncio era o pior os ruídos.

Encostei o corpo na parede de forma que conseguia observar a rua do alto do quarto andar de um prédio no centro da cidade. Só via um deserto úmido de concreto, escuro e sujo de panfletos sobre promoções de um salão de beleza que ficava na esquina. Sabia, pois todos os dias nos últimos seis meses passava por ali e lia, mesmo sem querer, "pé e mão a dez reais".

Deixei o café esfriar enquanto pensava nessas besteiras. Eu sabia que ela viria. Quero dizer... Dois dias atrás, havíamos nos esbarrado no supermercado. Não sabia bem a diferença entre um alvejante e uma água sanitária e fiquei parado lendo rótulos coloridos que não explicavam muita coisa. Escolhi aleatoriamente, certo de que minhas roupas brancas ficariam ainda mais brancas. Mais branco que o branco.

Quando ia entrando no corredor de produtos de higiene, pude ver seus longos e inconfundíveis cabelos ruivos. Ela segurava dois xampus.

- Em dúvida? - perguntei. Dois olhos gigantes e esverdeados me encaravam. Pareciam incrédulos.
- O que você está fazendo aqui?
- Compras. - sorri - o que mais estaria fazendo?

Ela colocou os dois frascos no carrinho e começou a empurrá-lo. Não entendi por que ela fez isso.

- O que foi? Só quero conversar - disse, segurando seu braço.
- E eu só quero fazer minhas compras em paz. - suspirou e olhou para o chão. Parecia estar um pouco trêmula.
- Tá bem. Vou te deixar em paz.
- Obrigada.
-  Mas antes... queria saber como vai a sua vida. Faz tanto tempo que não nos falamos. Soube que está morando em um apartamento no centro da cidade. Engraçado. Também estou morando por lá. Também ouvi dizer que, às quintas-feiras, você deixa o trabalho cinco minutos mais cedo pra poder tomar um chope em um dos bares mais movimentados do bairro. Soube, ainda, que você costuma voltar sozinha pra casa e quase sempre passa por uma das ruas transversais à avenida principal. Você deveria tomar cuidado. Aquela rua é muito escura às duas horas da manhã.

Ela me olhou. Parecia pálida. Disse que iria conversar comigo outra hora, talvez na próxima quinta, e foi embora, sumindo entre sabonetes e talcos para bebê.

Sorri lembrando da textura de veludo que a pele do seu rosto cheio de sardas tinha.

Eu sabia que ela viria, porque era quinta-feira. Sabia que ela teria entendido o recado. Só queria ajudá-la, protegê-la. Ela precisava vir. Não por mim, mas por ela. Sabia que ela, a qualquer momento, apareceria naquele deserto de concreto e, quando entrasse no meu pequeno apartamento, diria que estava tudo bem e que me perdoava por tudo.

Ela tinha que vir. Ela precisava urgentemente vir. Porque, bom, se não viesse... Se ela não visse, eu não sei o que eu seria capaz de fazer.

Juane Vaillant

Todas as calcinhas dela eram vermelhas e isso não era uma coincidência. Ela sempre andava com uma bolsa enorme e isso também não era por acaso.  Ela tinha uma roupa reserva na minha casa. E eu tenho certeza que minha casa não era a única. Era tudo pensado, tudo calculado. Ela nunca me disse adeus, mas foi embora, como tinha que ser.

Eu a conheci em uma festa qualquer. Ela estava ficando com uma menina, eu com outra. Nossos pares acabaram sumindo noite a dentro e sobramos até o fim da noite dividindo uma garrafa quente de catuaba. Eu nem gostava tanto, mas fiz companhia.

Eu estava tão detonado naquela época. Não parecia ser eu mesmo. Eu era uma espécie de sombra. Eu só consegui conversar com ela porque ela também estava. Porém sabia disfarçar tão bem, tão bem. Ela mesmo acreditava. Dizia que não ficava muito tempo na foça. Que as coisas a atravessavam,apenas. Mas aqueles olhos definitivamente eram de fundo do poço, embora o sorriso e o batom não fossem.

Nesse dia ela me falou sobre a Frida. E sobre a Rosa. E sobre a Cleo. Apelido que ela dava para a Cleópatra. Ela disse que embora ela tivessem enfrentando uma enorme crise em seu governo, fosse excelente em estratégia e altamente culta, só os seus casos amorosos se sobressaíram. “É assim com as mulheres. É sempre assim. Chegar lá não é chegar lá, a não ser que você tenha “alguém”.

Eu nunca ia saber o que era isso. Mas eu fui na wikipédia.Ela tinha uma certa razão. Quando você observa como são retratados homens e como são retratadas mulheres, existe sempre mais destaque para a vida amorosa das mulheres. Como se fosse o caminho óbvio. Como se fosse o objetivo. Ela nunca seria definida por um status. Ser uma citação na biografia de outra pessoa. E eu sabia isso desde o inicio.

“Dizem que ela colocou uma lei, que só ela poderia pintar as unhas de vermelho. A Cleopátra, digo.” Ela disse, olhando para cima, mas para si mesma.

“Você acha isso legal?” Eu perguntei. Não parecia o tipo de coisa que ela concordaria.
“Não, mas eu entendo. Querer ter algo só para si, em um mundo onde nem o seu corpo é. E ela era a rainha. Não sei se eu seria diferente, naquele contexto. Vermelho é vermelho.”  Ela sorriu. Eu já estava envolvido.


Se eu fosse o rei ela também nunca teria ia embora. Nem ela, nem as calcinhas vermelhas.

Engraçado como seu corpo reagia quando ficava desse jeito, sem graça. Ajeitava centenas de vezes o cabelo desajeitado atrás da orelha. Olhava pra baixo, desviava o olhar. Sorria, quase com medo. Eu sabia. Ela queria pedir desculpas pela noite passada, por ter bebido demais e ter dito aquelas coisas. Ela queria dizer que me amava, naquele exato instante.

Achei bonito aquele esforço pessoal para dizer o que queria, então não atrapalhei. Fiquei observando as mãos inquietas. Os silêncios desconfortáveis. Os rodeios que ela fazia enquanto falava sobre o dia em que nos conhecemos.

Tinha qualquer coisa de doce. Não tem como lembrar de Ana de outra maneira. Nem poderia, seria injusto. Com ela, com a memória, comigo. Eu sabia como era horrível pra ela ter que dizer algo, pedir desculpas e esse tipo de coisa que é preciso fazer para que fique tudo bem. Mas, confesso, na maioria das vezes, eu não fazia questão de que dissesse. Mas ela fazia. Ela se desafiava.

Toquei-a. Mão a mão, não há outra escolha. Ela encolheu os ombros como se tivesse ficado mais sem graça ainda depois do meu gesto. Éramos cúmplices, então sabíamos. Tocar-lhe a mão era a minha maneira de dizer.

Disse que estava tudo bem, que ela não tinha com o que se preocupar, que eu também a amo e que o depois sempre fica mais leve com esse sorriso sincero e bonito às oito horas da manhã. Que eu a perdoava e que ela precisava se perdoar, também.

Não disse, na verdade, assim com palavras, como ela insistia  em fazer sempre. Mas ela ouviu o meu toque. Ouvia sempre. E sorriu. E suspirou. E sentiu-se aliviada. E me abraçou. E, naquele instante, a gente se amou um pouco mais.

Juane Vaillant

Era terça-feira. No cinema, ele deixou uma cadeira vaga entre a minha e a dele.


~ ~


Eu olhei para as nuvens. Elas tinham formas de bicho. A maior de todas era uma águia, que pousou na minha mão.


~ ~


Prometi para mim mesma que nunca mais ia beber. Enquanto isso, jogava uma garrafa de cachaça vazia na porta do carro.


~ ~


Acordei suando. Olhei para o lado e ele ainda estava ali. Acordado.


~ ~


Dois anos antes, ele sentou ao meu lado. O teatro estava vazio e nós não nos conheciamos.


~ ~


Coloquei dois gelos do copo e uma bala no revolver.


~~


Eu passei por ele de cabeça erguida. Embora estivesse me rastejando porta a fora.


~ ~


Sorri fraco quando passei pela ponte. Eu senti que a cidade era minha pela primeira vez. E justo quando eu estava indo embora.


~ ~


Dois passarinhos comeram o resto do meu sanduíche. Eu estava ocupada devorando aqueles prédios.


~ ~


Os fogos pipocavam no céu e eu chorei como um bebê. A praia era tão parecida com a que eu sempre ia. Mas aquele lugar não era minha casa.


~ ~


O cara parecia perfeito. Até dizer o nome dele. Digo, o seu nome.


~ ~


Engoli em seco. Meus olhos roubaram toda a água. “Sim, eu fico.”

  
~ ~


Eu coloquei meus pés na areia. Vinte anos de memórias me molharam.

Revi nossa foto. Aquela velha imagem de nós juntos parece tão nova, agora, olhando assim. Estranho notar a pausa do retrato. É como um talismã, um amuleto que carrega um pequeno pedaço do espírito do tempo. Um pedaço feliz, nesse caso.

Quis chorar, mas só a alma pranteou. Deixei o sorriso estacionado lá, olhando aquela ideia, um reflexo do que passou, calculando quanto tempo demoraria para a saudade começar a arder.

Enquanto o sorriso saudava a recente foto, olhei dentro dos meus próprios olhos. Aquele outro alguém estava tão feliz com você, na época em que você ainda carregava o peso da existência. Nem parecíamos tristes por nossas condições. Só sorríamos.

Foi aí que, por um segundo, Chronos me visitou. Um segundo foi suficiente para que ele me explicasse suas diferentes formas de agir. Falou do tempo cronológico, que passa dia após dia. 5 e 6 e 7 e 8. Falou do tempo como o da foto, das melhores lembranças, do tempo que fica. E falou, ainda, do tempo que é. Do eterno. Além do que se vê. Nessa hora, ele me mostrou você, sorridente. E você me chamou e eu te dei um abraço apertado, choroso, cheio de saudade e amor. Você me disse que estava feliz. E sorrimos de novo, como na foto.

Antes de ir, Chronos me mostrou a foto de um dos seus filhos. E pediu para eu lembrar da metáfora. Fechei os olhos para deixar a lágrima seguir seu rumo e ele foi embora.

Sussurrei como se Chronos falasse por mim: "O tempo que corrói é o mesmo que eterniza". E começou a arder.

Juane Vaillant

“Apenas casual.” Eu pensei, enquanto andava pela rua. Meus óculos escuros cumpriam sua principal função: esconder os olhos de ressaca. Eu queria muito um copo d’água mas queria mais ainda chegar na minha casa e dormir.

Os pensamentos borbulhavam e eu por fora, fervia. Sim, tinha sido casual. Mas era um casual que já tinha acontecido algumas vezes. Eu tinha que admitir, que ao contrário da maioria das vezes, agora eu estava envolvida. Contra todas as expectativas.

Sentei no banco quente do ponto de ônibus e só sai do meu transe porque o celular “apitou”. Olhei. Era uma mensagem dele: “Ei moça. Adorei te ver. Fico tentando imaginar o que se passa nessa sua cabeça embaralhada. (carinha piscando) Será que se explica? kkkkk bj”

Pensei. Pensei. A ressaca estava me matando e eu provavelmente ainda estava um pouco bêbada. Escrevi tudo de uma vez. Não queria dar tempo para me arrepender.

“Foi muita coisa… Foi rajada, foi forte, foi vento, turbilhão. Bateu fundo, eu olhei  muito tempo, mergulhei muito fundo, na lagoa dos seus olhos, e não sai mais. Você chama de conexão, coisa que não se explica, coração. Eu chamo de angustia, desespero, desassossego, porque não sei  o que será, se vai parar. Vai cachoeira, rio, ladeira, desenfreia e não termina, não para. Não pensa, fecha os olhos, laça os dedos, e gira, olha o céu já está vermelho.  Não é real, é sensação, mas não quer dizer que não está acontecendo. Treme, bate o queixo, sua frio, abaixa cabeça, sorri de canto, que eu me encanto e não volto atrás. Peço perdão antecipadamente por ter medos, dúvidas e ser tão “razão”.  Por que, você ainda não sabe, não conhece nem percebe, o que já passou por aqui. Mas fica calmo, eu te mostro, eu te conto e entendendo, fica fácil,  fica mole, é só sinalizar que sabe e quer saber. Eu não diria isso, nem pensaria, se acaso não tivesse mudado, transformado, transportado, alguma coisa. Se eu ainda estivesse, no lugar comum, você seria, com certeza, mais um.... Um que não ia nem saber, pensar, perceber, que não tem culpa, por eu não querer, por me esquivar, esconder. E se acaso lhe parecer, que faço pouco caso, que desfaço promessas, eu não sou bem assim.  Aos poucos eu sossego, fico livre, solta, e me seguro em ti. É  claro, é seu direito, não reclamo se não quiser embarcar nessa estrada de pedras comigo. Mas eu te avisei, desde o principio, meu bem, eu não faço o menor sentido.”

Enviei. Me arrependi, sim, mas foi segundos depois. Estava lá e estava feito. A tecnologia as vezes tem dessas. Leva a gente para locais escusos. E eu, que nunca tinha dito nada, disse tudo.

Olhei a tela. Malditos tracinhos azuis. Visualizado, não respondido. Ri fraca, era compreensível. Nem todo mundo esta preparado para 1498 caracteres de poesia logo cedo. Ele precisava de um tempo.

já não sabia quanto tempo passara ali, a observar o vento levar as folhas de um lado ao outro. os pombos pousavam bicando, em vão, o chão sujo. pequenos insetos corriam desesperadamente pelas raízes gordas das árvores. estranhava que a natureza os tivesse feito todos iguais. embora soubesse que algumas formigas eram maior do que outras. o som dos sapatos batendo no asfalto era como o som de passos de um cavalo bem lerdo. às vezes, tinha sorte de ouvir o silêncio e, bem no meio dele, escutar o surdo zumbido que a brisa faz ao encontrar o ouvido. um pensamento feliz lhe veio à cabeça: lembrou-se de que domingo era seu dia de folga. alegrando a alma com as pequenezas da vida, esperou a noite chegar e, ali mesmo, dormiu.

Enquanto o vento sul balança as folhas do livro e de um abacateiro do lado de lá da grade, Aretha arruma, com sua voz, toda a bagunça da minha casa. A sensação de que tudo caminha numa direção sem volta desaparece.

While riding I think of us, dear. Querer esquecer o delineado molde do desejo é inútil. O desejo é a força motriz acalentadora da alma, ditadora dos passos. Não podemos fazer nada nem mudar destinos. I say a little prayer for (me) you.

Pensei em muita coisa sem tirar nada do lugar. De tudo, o que mais me roubou o tempo foi o dia em que seremos além de qualquer razão imposta. O dia em que decidiremos por nós, pelos nossos corpos, sem dúvida nem hesitação, porque, quando o corpo pede, por mais que se tente, não há como dizer não.

Chamas surgem em nossos corações o tempo todo. É cruel e bom.

Hoje quis saber se você está bem. E, mesmo com toda a facilidade tenológica, faltou-me a coragem de enviar uma carinha que finge ser feliz. Tenho praticado o exercício do silêncio para ver se escuto algo.

As pessoas tendem a não compreender o que está fora de um limite comum. Lástima. É importante não fazer parte da corrente de tolos. Toda corrente tem um elo fraco.

Preciso te lembrar que todo amor deve ser muito forte. Se não for assim, não é amor. O encantamento talvez seja a chave de uma libertação ao mesmo tempo em que pode aumentar a distância. É um risco que se corre, que vale a pena por si só. Não é bom perder o ritmo dos encantos na vida. Uma vez perdido, será difícil a sua retomada.

Estou tentando viver um personagem sem nome, que afirma ter rompido uma película entre ele e o outro. Fui convidada por ele para mergulhar no silêncio e, depois de muito esforço, percebi o quanto é difícil conter os gritos.

Marília Carreiro é escritora, editora na Pedregulho e diz que escreve "pseudo poemas". Vai editar e lançar nossos próximos livros e é a nossa convidada do mês.

Juane Vaillant

A cabeça pesada era uma constante. Talvez, fosse realmente alguma doença. Em igrejas, consultórios médicos e almoços de família, ela ouvia, desde muito nova, que havia algo errado com ela. Com o tempo, ela se convenceu de que, fosse o que fosse, eram impossível de mudar.

O grande problema é que ela não sabia exatamente o que era. A cabeça doía de tempos em tempos. A dor começava na região dos ouvidos e ia se espalhando pela parte de cima, trazendo a sensação de que todos os seus neurônios estavam se mexendo. As lágrimas também estavam sempre ali. Um formigamento que se alojava na parte da frente dos olhos e puxava aquele líquido constrangedor para frente. Envergonhando a menina e encabulando os de fora.

Resolveu que ia procurar um médico novamente. Agora por conta própria. Talvez, não um médico convencional. Um psicólogo, um curandeiro, quem sabe?

Andou pelas ruas a esmo. Queria um cartaz, um folheto, uma placa de neon, algo que indicasse uma direção. Se viu caminhado por horas, ultrapassou a estrada habitual. Chegou em uma estrada de chão. Esse letreiro de tinta chamou atenção. “Consertamos  disco voador.”  Entrou. Com medo do que podia ouvir.

Uma das lembranças mais sólidas da sua infância era um médico que disse que ela precisava de “surra”. Talvez, se ela se comportasse, fosse mais obediente, isso ia passar. Quando grande, sempre a aconselhavam parar de se preocupar. Parar de carregar a dor dos outros. Para de se importar. Apenas parar.

Embora ela não precisasse ouvir essas coisas. Já culpava a si mesma por tudo, sem precisar de avisos externos. Ela fez as escolhas. Ela disse “sim” quando deveria ser “não”. Mas principalmente ele disse “não” todas as vezes em que deveria ter dito “sim”.

Dentro da casa, que era mais conservada do que ela imaginou, avistou uma senhora, em uma cadeira de balanço velha, brincando com um cubo mágico. Seu semblante era sereno.

- Olá, a senhora é a dona aqui?
- Sim, minha filha. Sua voz era rouca, porém firme.
- E você realmente conserta discos voadores?
- Pois bem… - Ela falou, tirando os olhos do cubo pela primeira vez.  - Muitas vezes eu ouvi que não pertenço a este lugar. Que seja o que for que eu estiver fazendo, não está bom. Não está certo. Desde então eu estudo tudo que posso sobre discos voadores. Seus materiais, resistência, mecanismo… Então, se algum dia alguém aparecer aqui com um disco voador quebrado, eu terei alguma chance de ir para onde quer que seja.
- Desculpe, eu não tenho um disco voador.

- Ah, eu sei. - A senhora levantou, pegou dois copos e uma garrafa térmica e voltou a se sentar na cadeira de balanço. - Pode sentar minha filha. Vamos conversar. Qualquer pessoa que se interesse por discos voadores não está muito satisfeito com essa realidade pobre que mostram pra gente.

Entrou no ônibus sorridente, com a franja reta comprida o suficiente para quase lhe tampar os olhos. O brasileiro veio a sua frente e, depois dela, seu irmão. Sentou-se próxima à janela e insistia em conversar com o irmão em japonês. Pareciam estar contando piadas um para o outro. Ela sorria, fazendo questão de não sussurrar, como se quisesse gritar o orgulho que ainda restava por ser quem era.

Em inglês, o brasileiro tentava explicar o porquê de estar gripado. A menina achou que ele queria alguma coisa. Abriu a bolsa, mas logo entendeu o que ele dizia e falou para ele se cuidar, tomar bastante água. Disse em inglês. Também orgulhoso da língua que há pouco aprendera, o rapaz respondeu triunfante: "thanks".

Ela riu sozinha, logo depois. Encostou a cabeça na janela e pensou na ironia que a vida acabara de lhe mostrar. Havia deixado sua pátria em busca de compreensão, de espaço. Queria usar as roupas que quisesse, estudar o que achasse melhor. Cursar uma faculdade, ser independente.

Encontrou certa compreensão, sim. Mas, no exato momento em que ouviu o inglês do brasileiro, notou o apego que ainda tinha por seu idioma nativo. Veio ao Brasil em busca de um lugar que a compreendesse e, agora, tudo o que mais queria era alguém para compreender sua própria língua sem esforço. Sentia falta de pegar um ônibus e ouvir um burburinho em japonês. Ir ao mercado e se esforçar para perguntar o preço do refrigerante era, justamente, lembrar de que aquele não era o seu lugar, de que estava de passagem.

O lugar que, antes, para ela, era símbolo de incompreensão se tornou abrigo da compreensão que buscava. Pelo menos, de uma parte dela. "Talvez, a vida seja exatamente isso", pensou. "Uma eterna busca por compreensão, por compreender e por se fazer compreender". Fechou o olhos por alguns segundos e sentiu vontade de chorar.

De repente, levantou a cabeça assustada e pediu ao irmão para apertar o botão que sinalizava a parada do ônibus. Antes de sair, o irmão falou ao brasileiro "See you later", dando-lhe um aperto de mão. Já ela, com um sorriso quase tímido no rosto, despediu-se do brasileiro com um alto, sonoro e radiante "tchau".

Juane Vaillant

Sento na calçada e coloco meus pés na grama. A sensação de poder fazer isso logo de manhã é acolhedora. Na minha frente estão três crianças. Duas delas são tão pequenas que mal conseguem segurar os brinquedos que jogam de um lado para o outro. A terceira criança é um pouco maior. Ela parece achar graça da brincadeira dos outros dois. Mas não de uma forma debochada. Se diverte.

As duas crianças menores brincam de algo que consiste em jogar a bola de um lado para o outro. Quando um cai, o outro espera o amigo levantar e quando ele levanta os dois pulam e fazem "Eeee". Algum adulto deve ter ensinado, para que eles não chorem ao cair. Mas fica tão, tão mais genuíno quando as crianças fazem. Dizem, sem dizer nada. Dizem: Estou com você.

Em alguns momentos, alguma criança quer segurar a bola por mais tempo. O outro se zanga. Cruza os braços, sai de perto ou tenta tomar a bola. O conflito se arma por segundos. E também em segundo eles fazem as pazes. Jogando a bola para o alto, fazendo "Eeee" ou simplesmente dando a bola para o amigo que está triste. E por segundos, também segundos, eu acho a vida tão simples. Eu acho meus problemas tão simples de resolver. A bola não é minha afinal. Na vida dos adultos, ninguém é realmente o dono da bola.

Volto a realidade. A terceira criança, a mais velha, pega umas pipas. Quer fazer uma rabiola. Os pequenos não sabem fazer isso. Não fazem nem ideia do que seja. Eles usam a pipa como um avião de papel. Aprendem o significado de ressignificar. E me jogam esse conceito na cara também. Bem quando eu achava que não ia mais pensar nada.

Penso. Penso novamente. Você já viu como as pessoas olham para os bebês? Na rua, no ônibus, nas lojas? Elas estão interessadas. Elas estão animadas. É como se, só assim, olhando para uma pessoinha tão pequena, é que se deem conta do milagre da vida. Da essência das pessoas.

As três crianças continuam brincando. Pegando formigas na mão e as admirando. Como pode uma coisa tão pequena como essa ter vida? “Será que ela pensa?” Pergunta a criança mais velha para mim”. Eu não faço que sim nem que não. “O que você acha?” Pergunto depois de um tempo. “Acho que tudo pensa.” Ele responde, passando a formiga de uma mão para a outra.

Volto para o meu devaneio. A criança para o dela. E a formiga, provavelmente também.

Abriu o maço de cigarros e dois a esperavam. Pendurou um deles em seus lábios, com certa tristeza de vê-los acabando, com certa alegria por poder acendê-los. Era seu rito. Depois de beber muito, fumava um cigarro, sentada no banco azul da praça em frente a sua casa, enquanto esperava a feira e via o sol se amanhecer. Acreditava muito fortemente que aquilo lhe afastava a ressaca. Tinha funcionado até então.

Adorava ver as barracas sendo montadas, o dia se abrindo como uma flor, ouvir o burburinho começando, os abraços trocados. Mas adorava, principalmente, contemplar o sorriso no rosto de quem a mão se calejava dia após dia como fruto de seu trabalho.

Aquele sorriso não era um simples símbolo da alegria, pensava sozinha. Era isso, também. Mas mais do que a expressão da alegria, aquele sorriso era a expressão da esperança, da gratidão, do amor. E tudo isso preenchia Ana de uma forma que, sabia, nenhum copo de cerveja e nenhum trago de cigarro seria capaz de fazer.

Lembrou de Jó. A história do homem que perdeu tudo o que lhe era mais precioso, filhos, terras, saúde e quase sua sanidade, mas - ainda assim - agradecia ao seu deus. Ana não acreditava em deus, mas guardava essa história - que a mãe contara inúmeras vezes - a sete chaves. A gratidão em meio a dor, por mais forte que ela seja. É sobre saber que há algo em nós maior do que as dores que, achamos, nos cegam. Há uma força.

E essa força Ana podia observar naquele exato momento. Nos sorrisos dos feirantes, nos abraços fraternos e aparentemente sinceros que trocavam. No "bom dia" que vinha daqui, de lá. Sem perceber, o cigarro já estava no fim e sentia-se bem por estar exatamente ali onde estava. Estava além de suas próprias preocupações.

- Bom dia, Ana. Bebeu muito hoje?

- Bom dia, Carlinhos. Só um pouco!

Era o mendigo da esquina. Sempre passava por ali, sorrindo. Às vezes, cantava qualquer música, enquanto procurava alguma comida nas sobras da feira. Nesse dia, ele olhou Ana bem dentro de seus olhos, sentou-se ao seu lado e disse:

- É isso, minha filha. Vamos viver. Porque, dizia o poeta, o tempo não para.

E saiu a cantarolar os versos de Cazuza, como se não houvesse nenhum problema, como se a vida fosse boa para ele. E talvez fosse, afinal. Ana sorriu. Saudou Cazuza, saudou Jó, saudou sua falecida mãe e foi para casa dormir.

Juane Vaillant

Para alguém que espera algo tão extraordinário da vida, uma grande virada, uma descoberta, uma viagem inesperada… Quase tudo poderia parecer entediante em algum momento. Mas definitivamente quartas-feiras eram entediantes. Catharina estava no ponto de ônibus e o seu passou, como se ela não estivesse ali com o braço para o ar desde que ele virou a esquina. Droga! Perder o ônibus era que transformava um dia normal e pacato em um dia realmente chato.

- Seria muito bom ter teletransporte, né?
Disse um homem ao seu lado. Ele devia ter uns quarenta anos e aparentava uma leveza sem tamanho. Catharina ficou impressionada que ele tivesse falado logo sobre isso. Teletransporte era mais recorrente na sua cabeça do que as tarefas diárias ou pensar naquele cara.

A primeira vez que pensou sobre isso, era bem pequena. Teve essa viagem na escola, e seus pais não tinham dinheiro para o transporte. Ela, que tinha ouvido sobre teletransporte em um desenho animado, pensou que essa seria uma ótima forma de ir até lá. Descobriu, não muito depois, que teletransporte não existia. Mas intimamente, acreditava que se ela desejasse muito, muito, algum dia ela teria essa chance.

 - Sim, seria ótimo. Para isso e outras coisas. - Ela respondeu para o homem, ainda olhando o ônibus perdido se afastar.
 - Você acha, que se fosse fazer um pedido, seria esse? - O homem falou. Concertou os óculos e olhou diretamente para ela.
 - Um pedido para quem? Catharina perguntou, um tanto desconfiada, um tanto palpitante. Quem espera grandes coisas da vida tende a apreciar conversas estranhas.
 - Sei lá, um gênio, ou algo assim. - Algo na forma como o homem falava, dava a entender que ele a conhecia de algum lugar. - E se for, porque?
 - Sim, queria isso. - Catharina tinha tantos motivos para desejar o teletransporte. O fato de nunca ter tido muitas oportunidades de viajar, seu amor por história e arte, a vontade de conhecer novas pessoas…. Mas não foi isso que ela respondeu. - Eu tento andar por ai como se nada estivesse acontecendo, esquecer algumas coisas, algumas pessoas, mas essa cidade.. Esse ar, esses muros… Estão impregnados de mim mesma. De memórias que eu preferia não ter. Mesmo que outras cidades se pareçam com essa, elas não terão esse cheiro forte de passado.

O homem riu de canto. Catharina achou ele parecia satisfeito com a resposta, e ao mesmo tempo surpreso com a sinceridade. Mas na verdade isso era comum dela. Ela sempre era sincera sobre si mesma e isso geralmente deixa as pessoas sem saber como responder a algo tão cru, tão despido de duplos sentidos.

- Sabe o que me fez conseguir o teletransporte? - Ele disse, como se dissesse “sabe pq eu troquei de operadora?” Catharina apenas fez um aceno de cabeça para que ele continuasse. Não queria interromper, mesmo que ele fosse um louco. Principalmente se ele fosse um louco. - Alguém que quer teletransporte, certamente quer partir. Mas não quer partir totalmente. Quer sempre poder voltar para o lugar de onde veio. Quer ficar em se equilibrando em cima desse muro. Mas as coisas não funcionam bem assim. É preciso saber a hora de ficar em alguns lugares. É preciso passar um tempo realmente longo. Quando você souber os motivos pelos quais você ficaria em algum lugar, sem voltar para casa Catharina, você conseguirá.

Ela olhou para o homem sem dizer nada. Ele fez um aceno de cabeça e começou a andar. Em meio a multidão de pessoas indo e vindo perto ao ponto de ônibus, ele sumiu. Catharina nunca tinha pensado sobre isso. Na cabeça dela, com o teletransporte ele passaria os dias de um lado para o outro conhecendo os cantinhos mais remotos do mundo.

Mas quando ele falou, simplesmente a resposta lhe veio, clara. O que a fez querer embora é o mesmo que a faria quer ficar. Pessoas. Se ela conhecesse, nesses mil e um lugares, pessoas que pedissem para ela ficar, ela ficaria.


Fechou os olhos, enebriada com a possibilidade. Uma brisa fresca e salgada passou por ela. Abriu os olhos e na sua frente não estava a BR movimentada, e sim sua praia favorita. Manteve os olhos abertos. Sonho ou não, ela não queria perder um segundo.

Pensou em escrever uma carta. Segundos depois, a ideia lhe pareceu ruim. Há beleza nas cartas, sim, mas não existe a réplica imediata necessária. Não queria deixar margem para que nada ficasse mal resolvido, já que decidira partir só depois de revisitar todas as suas pendências emocionais. Precisava de paz, então decidiu buscá-la.

Já não havia mais espaço para ela naquela cidade. Era o que pensava. Não que não houvesse espaço físico ou tivesse inimizades demais, mas sentia que só haveria espaço para ela naquele lugar se permanecesse exatamente como estava. E como estava, onde estava, não havia paz. Precisava expandir-se, (re)iluminar-se.

Marcou com ele às sete no bar onde se encontraram pela primeira vez. "Típico", pensou sem se envergonhar por sua tipicidade. No espelho, havia treinado centenas de falas e imaginado as possíveis tréplicas do rapaz. Tentou lembrar das vezes que o magoou e buscou entender sua parcela de culpa em terem ficado tanto tempo sem olhar um para a cara do outro. Mesmo depois de tanto amor.

Estava nervosa. Era como se tudo dependesse daquela noite. Pediu uma longneck e riu lembrando de como ele dizia que ela bebia demais. Não dizia recriminando-a, mas quase a exaltando, elegendo-a. Sorriu e olhou o celular. "Estou chegando", dizia a mensagem.

Mais um gole e se lembrou de como ele foi sensível quando a consolou após ter sido demitida do seu primeiro emprego. Ele a abraçou, limpou suas lágrimas e, sem dizer nada, alisou seus negros cabelos e o trançou. Não que ele soubesse fazer tranças, não que tenha ficado bonito. Mas, lembrando-se daqueles segundos em silêncio e do afeto mútuo daquele momento, os olhos se encheram de água e o coração apertou ansioso por perdoar, ansioso por perdão.

- Ei - o cumprimento do rapaz despertou Ana de seus devaneios.
- Ah, ei. Desculpa - sorriu, meio sem graça. Havia muito que não se viam.

Ele pediu uma dose de conhaque e ela riu ao perceber que alguns hábitos não haviam mudado. Nos dois.

- Bom... - tentou começar, sem conseguir olhá-lo.
- Eu - continuou - vou me mudar. Passar uns tempos longe daqui. E eu pensei muito. E eu achava que deveria...

Ele tocou a mão que segurava, rígida, a pequena garrafa esverdeada. Ao levantar o olhar, notou o sorriso franco e aberto que o enfeitava. Os olhos dela transbordaram. Os dele se encheram. Fechou-os, ela, tentando assimilar o que estava sendo dito naquele silêncio. Perdão. Perdoaram-se.

Permitiu que um largo e tranquilo sorriso estampasse seu fino rosto cheio de lágrimas. E, então, tudo estava em paz.

bate o copo na mesa, faz barulho, derruba a cerveja. vai que hoje eu quero chamar atenção. a sua atenção é a minha intenção.

eu olho pra você com o olhar mais louco do universo. porque eu quero me infiltrar nos teus mares, nesse teu oceano, tão azul, tão teu. que, esta noite, eu planejo que seja minha. só minha e só meu.

você batuca na mesa para desnortear a música ao fundo e tentar quebrar as minhas palavras - que te fazem perder a graça e ganhar o brilho nos olhos - só para eu sorrir pra você. um sorriso que agora não é voltado pra mais ninguém além dos teus lábios.

sento ao seu lado e começo a questionar.

eu pergunto de você, quero conhecer a sua vida, a sua infância. se você já viajou, como conseguiu voltar e se pretende ficar. aqui, comigo.

quero saber como seus pais são, a sua origem, seus gostos, suas músicas. quero conhecer cada gesto seu. o jeito de ajeitar o cabelo, aquela sua camisa rasgada, o poeta favorito, o que te faz chorar e o que já te fez sorrir.

quero saber como te apoiar no teu choro calado, quando ninguém mais ouviu nada, eu quero ouvir tudo.

quero reconhecer teu cheiro de longe, passar pelas avenidas, esquinas e alamedas procurando um rastro teu que sobrou em mim da noite anterior.

quero que você me conte dos relacionamentos passados, das traições, dos amores, das fodas e do futuro.

quero te enxergar no escuro, sentindo somente a minha pele sob a sua pele nua.

porque assim eu vou te te(ce)ndo aos poucos, pouco a pouco dentro de mim. e vou tracejando um mapa seu na minha alma. e vou navegar pra onde você quiser ir. vou te levar pra qualquer lugar, pra bem longe daqui. onde não exista nenhum outro pronome além de nós.

engole a cerveja e digere o desejo.

eu te quero aqui, sem menos, só mais.

é pra vir agora e me querer agora, pois eu deixo tudo. hoje a noite é livre.

porque eu te quero solenemente hoje, que ainda é presente e a sobriedade passa longe da porta.

eu peço, venha logo.

e você vem.

a gente se beija num silêncio crucial entre os dois mundos: o nosso e o dos loucos.

e você vai até o fim

despertando o amor da minha língua na sua

assim

Yasmin Nariyoshi nasceu poeta e é por isso que a sua prosa é cheia de poesia. Estudou Letras - Português na Universidade Federal de São Paulo, é amiga da Isabella e é a nossa convidada do mês.

Juane Vaillant

Conheci essa garota e meu sentimento em relação a ela foi complexo. Ao mesmo tempo em que a achei incrível, ela era tão segura, tão madura e ao mesmo tempo tão descontraída, que eu não pude acreditar que ela não estivesse de certa forma atuando. Aquela ferpa incomoda chamada inveja me bateu.

Conversei com ela por horas e ela parecia a sabedoria em pessoa. Como se ela tivesse descoberto aquele pulo do gato, o segredinho atrás da porta, para chegar a um entendimento apurado das coisas. E como ela sabia sobre a arte de ser mulher! Como entendia nosso corpo, nossas emoções, nossos desejos.

Queria rir de mim mesma. Eu que tenho tantas neuras, tantos percalços, tantas coisas para lidar dentro de mim mesma.   Eu que as vezes fujo, as vezes me escondo em outras de mim, as vezes viro papel, as vezes viro tinta, tenho o mau costume de achar que as pessoas são também, camaleões. Dançando conforme uma música que você não escolheu.  Será que ela também era?

Voltei pra casa pensando nos processos dessa mulher. Em tudo que aconteceu com ela, para que um dia ela pudesse ter essa consciência. Demorou muito tempo até eu vê-la de novo. Ela tinha a mesma graça, o mesmo jeito suave de falar e a mesma certeza. E eu ali, ainda sendo eu mesma, com passos pequenos, me equilibrando.

Mas de uma outra pra outra, ela mudou.Observei que um homem tinha chegado perto de nós. Eu não conhecia direito, e o que eu sabia não era bom. Ela estava, tal como flor de plástico, como couro falso, sendo uma cópia de si mesma. Tateando o espaço e tentando ser ainda mais agradável. Não sei se ele percebeu.

Eu lembrei das muitas vezes em que eu tinha, miseravelmente tentando demonstrar afeto por alguém. Tentar fazer a pessoa entender, através da linguagem universal dos sinais corporais, o que eu queria dizer.

Meus sentimentos foram ainda mais dúbios com relação a ela. Por um lado, me entristecia vê-la perdendo um pouco seu brilho do lado de alguém. Parecia um crime. Mas, no fundo, lá no fundo, me deu uma certa esperança ver que eu tinha algo em comum com aquela fortaleza, aquele acontecimento. Um ponto fraco, mesmo que pequeno, confundindo tudo, e nos tornando humanas.

A situação era esta: uma garota pensava dentro de um pequeno quarto de um hotel três estrelas, localizado no centro de uma grande capital. Sozinha, a garota visitava a cidade pela primeira vez. Tirando os turistas, ninguém falava sua língua e, com dificuldade, conseguia entender quando o atendente perguntava se iria querer ketchup no lanche. Na situação inicial, a garota - que já havia conhecido e fotografado alguns dos mais famosos pontos da cidade com a ajuda de um guia turístico - pensava. A dúvida era se deveria sair à noite, ir a um pub, sozinha.

Estava longe de casa e de sua cidade há mais de dez dias, o que fez com que - àquela altura - um misto de saudade e ansiedade percorresse todo seu corpo. Pensou em como seria divertido sair com suas amigas naquele dia. Sentiu falta de saber como chegar aos lugares sem precisar de um mapa. Não conhecia as ruas daquela cidade à noite. Seriam perigosas? Talvez, sim. Talvez, não. E, sendo perigosas, deixaria de sair por isso? Quais os riscos? Valeria a pena?

Lembrou do que leu no dia anterior, sentada sob uma linda e enorme árvore numa das mais memoráveis praças da capital. Lia Kundera que falava sobre a vertigem, aquela tonteira que nos dá de repente ou quando estamos diante de algum abismo profundo. Vertigem. Ele dizia que a vertigem não é o medo de cair e sim o desejo de se entregar à queda - "do qual nos defendemos aterrorizados".

Quando leu essas frases, a garota logo entendeu o que o escritor tcheco dizia. Havia experimentado aquela sensação pouco antes de decidir ir viajar. E a viagem - uma espécie de fuga particular - era a própria queda. Era um tapa, um estalo que a tirou do transe e a lembrou de que, na vida, há coisas horríveis, sim; mas há também - e sempre haverá - coisas belíssimas que câmera nenhuma seria capaz de registrar.

Pensando em Kundera e em tudo o que estava fazendo para se livrar da  sensação de vertigem, considerou estúpida a sua própria dúvida e, minutos depois, estava fazendo amizade com garçons vestidos de piratas e ficando bêbada com alguns copos de cerveja. Sozinha, sim. Mas feliz em ultrapassar a vertigem, desarmar suas próprias defesas e se permitir a uma deliciosa e surpreendente queda.

Eu nasci com esse balão de gás hélio invisível, preso na minha mão por uma corda também invisível. Cada vez que eu pulava para tentar alcançar algo, chegar mais rápido, comemorar, brincar, eu subia um pouco mais. de modo que em poucos anos, ficava impossível colocar os pés no chão. 

As vezes, as pessoas estavam falando comigo e eu nem conseguia ouvir. Eu estava bem no alto e tudo me distraia. Difícil era até se curvar, para tentar olhar para as pessoas de frente. Prestar atenção. De cima, nada poderia me abalar, mas também não poderia me afetar. Meu mundo era como uma redoma de vidro onde só passava a sombra de todas as coisas. Deixando a realidade mascarada, fantasma. 

E ais que, inesperadamente, um fato, certeiro como uma flecha, afinado como agulha e paradoxalmente tão pequeno pra quem vê de fora, atinge, sem piedade, meu companheiro balão, me levando, sem nenhum tipo de amortecimento, direto para o chão. E no fundo eu sabia, que o baque tinha sido forte mas a queda era a pior parte. 

E no chão as pessoas estavam perto. Muito perto. Assustadoramente perto. E eu me perguntava o que elas diriam quando, de repente, eu me desligasse do assunto, ou sumisse por uns dias, porque minha cabeça estava nessa outra vida, a vida junto com meu balão de ar. Eu torcia para que elas pudessem me perdoar. 

Eu encontrei essa menina, quase uma criança, que me disse que eu me importava muito. Com tudo. Que eu devia deixar algumas coisas passarem. E tinha esse senhor que riu quando eu eu falei que nunca mais eu poderia voar. Ele disse que tudo estava na minha mente. O chão e o céu.E essa mulher, forte como um carvalho, que me ensinou que eu ainda tinha muito a aprender. Que embora eu achasse, devido a minha experiência fora do chão, que eu sabia demais, na verdade esse era só um começo. 

E por acaso eu encontrei alguns outros que tinham perdido seus balões. Eles ainda tinha a leveza de quem sabe voar, mas sabiam dar a valor ao fato de poder caminhar. Um desses me disse que gente como a gente não tem mistério. Apenas é. E isso é tão claro para as outras pessoas, que a empatia é imediata. Eles entendem. 

Fui absorvendo. Comendo as palavras que  chegavam a mim, e botando pra fora as que não cabiam. Até que nesse dia eu fui espreguiçar e senti. Senti aquele vento fresco e puro que eu só conseguia sentir lá de cima. Com um susto, olhei imediatamente para os meus pés. Não acreditei.  Olhei para toda a estenção do meu corpo. Eu estava grande, enorme. Mas ainda assim, meus pés estavam firmes no chão. 

Vinho. Você está segurando uma taça de vinho. De novo. Você segura uma taça de vinho sempre que está se sentindo triste. Um gole, dois, três. Quantas taças você já tomou? Algumas. Coloca um vestido, seu salto preferido, usa seu batom novo e faz uma careta para o espelho. Esquece de perguntar às amigas onde elas estão. Desiste de perguntar ao rapaz. Odeia filas, mas a enfrenta mesmo assim, enquanto fuma um ou dois cigarros.

Você se levanta quando começa a tocar a música que você diz ser sua. A música da sua vida. "We used to be closer than this", repete o refrão. Há alguns conhecidos na pista de dança, com quem você finge se importar e dança e sorri, enquanto deixa as lágrimas seguirem seu rumo. A solidão tem sido sua melhor companhia.

Do outro lado, você o vê. Alguma coisa em você doi e você decide ir para a área de fumantes. E fica lá. Fumando, chorando, rindo. Tenta fingir que se importa com quem finge que se importa com você. Responde "não é nada" e agradece aos estranhos que aliviam suas consciências te perguntando o que aconteceu. Quando você percebe que ninguém vai entender a sua dor passa a não se importar com o que vão pensar ao te verem lidando com ela.

"Foi o vinho". Alguém falou, quando você vomitou na entrada da boate. Não se lembra bem o que houve desde o último trago, mas sorri, porque ele está do outro lado da rua. Você se levanta e, ao observá-lo, pensa: "Quando alguém te ama, alguém te ama. Palavras são acessórios". Ele sorri e você também.

Você decide olhar o celular. Algumas amigas tinham te ligado e você tinha postado "a vida é uma merda" no Facebook. Seus amigos riram. Outros fingiram se importar.

Você acenou para ele e foi embora, andando.

De repente, ele chega e te abraça e diz que vai ficar tudo bem. Diz que a bateria do celular tinha acabado. Diz que te ama. Diz que vocês vão se entender, mesmo "desse jeito louco". Você chora, porque você chora sempre que se sente muito triste ou muito feliz. E diz

- Obrigada por não fingir se importar.


Eu era delegada há apenas seis meses.

Todo dia eu acordava mais cedo do que precisava. Eu tinha que pensar em tudo. Minha roupa, cabelo, jeito de andar, jeito de falar, postura. Eu não queria dar margem para nem um tipo de comentário. Nem bom nem ruim ao meu respeito. Na verdade se eu pudesse ser invisível, eu seria. Além de mim, apenas mais uma mulher policial e uma secretária. E mais de vinte homens.

Todos os dias eu pensava em desistir. Todos os dias eu pensava que advogar em uma empresa privada teria sido minha melhor escolha. A mais consciente. Mas eu não era muito. Eu sempre fui movida a paixões e impulsos. E por essas e outras eu vim parar aqui. E nessas eu conheci Carmen.

Era fim de expediente e eu estava morta de cansaço. Toda nova ocorrência que chegava, eu fechava os olhos e mentalizava minha cama. Meu copo de chá. Minha coberta com estampa de zebra. Nesse dia tinha chovido muito e muitos funcionários tinham faltado. Todos estavam fazendo de tudo um pouco, então eu fui atender esse B.O de ultima hora.

Ela sentou na minha frente e seu semblante era placido. Ela tinha um olhar duro e determinado. A maquiagem milimetricamente desenhada acentuava. Eu nunca fui o tipo que liguei para coisas de marca, mas olhando pra ela, eu sabia que aquelas roupas eram de alta costura. Eu já tinha as informações de lugar, hora, e tudo mais. Então fui direto ao ponto.

- Me conte o ocorrido senhora.

- É senhorita. Ela corrigiu, mas de forma calma.  Mas ali todo mundo era senhora e senhor. Essa norma da língua tinha caído a tempos.

-Tudo bem, senhorita.

- Pois bem. - Ela começou se ajeitando na cadeira.  - Eu estava saindo da loja, com algumas compras e tinha chamado um táxi. Era por volta das seis, nem estava tão escuro, sabe? Ele veio em direção a mim e já foi me mostrando a arma e me empurrando.  Ele vestia uma bermuda, camisa preta, boné preto também. Era da minha cor. Falava alto, crescia para cima de mim. Eu não entendi uma palavra. Apenas entreguei tudo que tinha e ele veio, sem mais e... Deu um tapa na minha bunda! Não sei o que isso tinha a ver com o assalto, ele apenas se sentiu no direito.  Pegou impulso e correu para uma rua escura.

- A agressão deixou alguma marca Senhorita?

- Deixou, claro. Como muitas outras. É a invasão, sabe? - Ele me lanço um olhar de cumplicidade que me atingiu como uma flecha. Eu apenas sorri fraco de volta. - Olha Delegada, vou te contar uma coisa. Eu me casei três vezes. Todas as vezes que sai de casa, eu sai apenas com o que tinha entrado. Nunca quis nada. Nem um brinco. Não tenho esse tipo de apego material. as coisas veem e é ótimo, mas um dia elas vão. Sempre vão. Então o que me incomoda é a invasão. Eu sou do interior. Venda Nova. Eu demorei um mês para dar as mãos ao meu primeiro namorado. Ai aparece um moço sei lá de onde, sabe? É muita audácia.  - Eu não soube o que responder na hora. Sabia exatamente o que ela queria dizer.  - Não precisa escrever isso tudo. Ela continuou, antes da minha resposta padrão. - Eu só queria contar isso para alguém que ia prestar atenção.

Eu anotei tudo. Sem tirar nem por. Ela pediu obrigada. Se levantou e caminhou até a porta. Elegante como eu jamais seria. A ideia da femme fatale me ocorreu. E me fez rir. Uma mulher fatal deve parecer uma coisa bem curiosa mesmo para os homens. Já para nós, quase todos eles são potencialmente fatais.