Quando a poesia vira poema?


Um dia, eu acordei e percebi que não sabia mais escrever poemas. "Como foi isso?", você me pergunta, enquanto estou deitada no seu divã. Pergunta com um tom discreto de incredulidade. Só não foi discreto o suficiente para passar despercebido. Notei sua ironia, doutor. Gargalho durante um minuto. Você não acredita, né? Como poderia, assim, acordar um poeta sem saber poetizar? Seria o mesmo que acordar sem respirar. Nesse caso, então, sem respirar, o ser não acordaria, não é mesmo?

Acontece que não estou aqui para ouvir suas incredulidades. Você pergunta, eu respondo. Acordei sem saber mais escrever poemas. Pronto, ponto, fato. Parei em frente ao computador, com uma coisa dentro de mim, querendo transformar aquela coisa qualquer em um poema qualquer mas acontece que nada nada nada nada vinha nem uma vírgula nem uma letra. Nada.

Pensei, então, que o problema estava no método. Talvez, minha alma tivesse acordado envelhecida, retrô. Peguei um papel, olhei o horizonte de concreto que marcava a paisagem da minha janela e nada nada nada nada absolutamente nada vazio eterno vácuo deserto. Amassei cinquenta folhas em branco. Depois, fiquei com pena dos papeis. Todos em branco. Triste morrer assim, sem ser útil para sua própria finalidade.

Mas aí, pensei de novo, talvez minha alma tivesse acordado bem mais velha do que uma caneta bic cor azul. A máquina de escrever! Ah! Uma olivetti linea 88, quem sabe, talvez, fosse capaz de extrair de mim toda a poesia que me engasgava como um refluxo. E eu tossia, só de pensar no poema que não queria nascer.

Nada. Nada nada e nada nem mesmo uma sílaba se quer nem mesmo um ponto uma exclamação nada. Senti como se um gosto de fel descesse pela minha garganta e me causasse dores como as de uma gastrite bem aguda. Comecei a me contorcer e caí no chão de tanta dor. Percebi na hora: eu estava morrendo. Eu ia morrer se não fizesse nada. Era o meu fim!

De repente, a gastrite se transformou em úlcera e a dor me cegava. Sem perceber, meu rosto estava úmido. As lágrimas incessantes desciam, como se festejassem qualquer liberdade. Estúpidas, burras. Logo deixariam de ser lágrima. Logo, logo, não seriam mais nada absolutamente nada, exatamente como aquilo que tentei escrever. Nada.

Com a pouca força que restava, fui pra rua com a ideia de ir tomar um ar, me refrescar, sei lá. E as pessoas me olhavam como se eu estivesse morrendo, mas não faziam nada. Não me sugeriam uma palavra, um tema, uma forma. Ninguém falava sobre o meu poema comigo, ninguém falava sobre nada comigo. Nada nada nada.

Se eu não pensei estar enlouquecendo? Doutor, assim até me ofende. Eu estava realmente morrendo e ninguém queria ligar para a emergência! Enquanto eu estava perdendo o ar no meio da avenida paulista, tive uma ideia. Talvez, uma daquelas respostas divinas que as pessoas têm, mas morrem logo depois e ninguém fica sabendo dos mistérios do universo.

Acontece que eu sobrevivi! Sabe-se lá porque, mas deus teve pena de mim, doutor. E, naquela hora de dor profunda, pensei: preciso de uma impossibilidade. Eu não preciso morrer de verdade, como estava acontecendo, mas eu precisava imaginar que eu iria morrer. Aí sim eu teria algum motivo para escrever. Aí sim, lembrei do poeta, da impossibilidade nasceria a poesia!

Ah, mas como, senhor? Clamei. Como eu poderia, como faria? Não sou eu deus. Pedi, ajoelhada bem no meio da rua, clamei por qualquer impossibilidade, qualquer tristeza que, por amor, o bom senhor pudesse me conceder para que eu não definhasse inútil em minha própria finalidade.

Quando olhei para o lado, doutor, vinha o carro que não conseguiu parar e, por pouco, não me matou de verdade. Fiquei em coma um tempo e, depois disso, escrevi cinco livros.

Dois deles já foram vencedores daquele prêmio importante de literatura, sabe? Tenho um aqui pro senhor, doutor.