Eram 23h45, quando o telefone tocou. Era ela. Não me disse oi, nem olá. Quando atendi, ela falou: "Estava aqui pensando. Por que tem mulher que gosta de homem?". E caiu na gargalhada. Eu ri. Estava em uma farmácia 24 horas, de olho no atendente que tinha acabado de entrar no estoque para buscar minhas caixas de anticoncepcional.

Ela estava em outra cidade. Tinha decidido morar um tempo no estado vizinho, por razões pessoais. Queria se encontrar, ir atrás dos seus sonhos, essas coisas. Pra mim, a verdade é que ela se vê como personagem de um livro e, por isso, tenta se reinventar a todo momento, para deixar o leitor sempre suficientemente interessado. Uma coisa.

Seu corpo estava lá, distante, mas a mente passeava sobrevoando as ruas daqui. Talvez, em sua imaginação, ela tenha me visto atender o telefone, na rua escura, esperando impacientemente o atendente me entregar os remédios, enquanto ria do que ela me dizia.

Olhei pra trás e ele me esperava, sorridente. Enquanto isso, ela se perguntava, completamente ébria do caos e do álcool, por que é que algumas mulheres (ela não disse, mas, talvez, especialmente, as que ela se interessava) gostavam de homens. Não entendia.

Eu ri da pergunta, do telefonema àquela hora. Pensei no fato de que ela preferiu me ligar, no meio de sua confusão alcoólica, a viver aquele momento sem ouvir o que eu teria pra dizer. Ela queria me manter em sua vida a qualquer custo. E eu sorri mais ainda ao perceber isso.

Ela disse que estava bêbada e eu ri de novo, pensando "é claro, oras!". Peguei os remédios, sorri ao vendedor e respondi à pergunta dela com outra: "É por isso que você me ligou?". Rimos demais. Talvez, ela tenha lembrado de alguma história nossa. Ela disse que estava com saudades e eu disse que também.

Sempre que pergunto quando ela voltará, ela diz que não sabe, deixa no ar, como se quisesse dizer que não voltará mais. Dessa vez, ela prometeu que viria me ver no mês do meu aniversário, mas ontem mesmo falou que não ia dar. Estava sem dinheiro.
foto: Juane Vaillant
O sítio é a lembrança – ou pelo menos uma das – mais fortes da minha infância. Lembro de acordar com um salto toda vez que sabia que vinha.
Mentalmente eu repassava tudo que ia fazer: Ir na piscina
Subir na árvore
Fazer casinha
Ir na nascente
Fazer fogueira
Jogar adedonha
Pegar fruta.
Eu conheço cada pedaço dessa terra. Os pés de manga, as rachaduras na piscina, as gambiarras da casa e as elevações na pedra. Reconheço a estrada que leva até a porteira, tão bem como a rua da minha casa ou o “Beco da Fome”, do centro de Guarapari.
Por entre esses galhos e folhas secas, eu ouvi e contei segredos. Naquela piscina, aprendi a nadar e comecei tantas amizades. Quantos clubes de um dia eu não formei naquelas casinhas na árvore? Quantos grupos diferentes de amigos eu não trouxe aqui. E muitos ainda pretendo trazer.
Hoje as atividades de infância são raras, e por vezes até reluto vir. Mas é certo que toda vez que chego, parece um retorno para casa. Como aquele forasteiro que ganhou o mundo para descobrir que ama a sua cidade natal.
Certa vez eu escrevi em um diário coisas daqui para não esquecer. Falei do beliche, da pedra, do Pretinho e da Susi. Do laguinho e da piscina, do fogão a lenha e do banco azul. O diário eu perdi, ao contrário dessas memórias.
Quem sabe um dia eu realize
O sonho clichê de todo escritor
E tenha para mim um sítio desses.
Para criar nos meus filhos
memórias como essas.

Não precisava que fosse muito gelada, a cerveja. Só precisava que fosse cerveja. Até mesmo ela meio quente, assim, daquele tipo que quando a gente bebe faz cara feia, eu tomaria. E nem precisava o clima estar frio. Podia, inclusive, estar fazendo esse calor infernal que tem feito todos os dias desde que você se foi. Também não tinha que ser nessas baladas cults, nem nesses cafés gourmets pseudo-intelectuais.

Podia ser no risca-faca aqui do lado de casa. Aquele onde eu mesma já comprei inúmeras "últimas latinhas". Não teria problema ser durante a semana. É certo que, você sabe, eu prefiro sair aos sábados, mas não me importaria que fosse numa terça, ou numa quinta-feira.

Também não ligaria se fosse no fim do mês e eu estivesse com pouco dinheiro. Quero dizer, existe crédito pra esse tipo de coisa, não? Esse tipo de emergência. Tudo bem, também, se você levasse alguém e quase não me desse atenção. A cerveja quente e o sertanejo me fariam companhia. Ver você sorrir me faria bem.

Eu não faria questão de que você me deixasse em casa, como sempre fazia, se nesse dia você decidisse dormir na casa desse alguém. Eu pegaria um táxi. Passaria no crédito. Hoje em dia, todo mundo aceita cartão. Sabe, né.

Fosse depois do trabalho, fizesse chuva, estragasse minha sandália, furasse meu pé, vencesse meu desodorante, qual fosse a condição, eu não ligaria. Não precisaria de muito. Só precisaria que fosse com você.
Quando eu era pequena, queria muito aprender acordeon. Meu avô tocava, e quando ele fazia isso, fechava os olhos e estava em outro mundo. Podia estar tudo desabando que seu semblante cansado se iluminava e vageava para o além mar.

Queria vaguear também. Queria estar livre de todos os pensamentos por uma hora ou duas. Eu era uma criança que pensava muito. Pensava no que faria quando crescesse, da onde vinha o dinheiro, se seria legal quando a gente virasse adulto e, certa vez, surtei, quando descobri que Papai Noel não existia. Ou seja, como as outras crianças, as que não tinham pais, as que moravam na rua, as de famílias pobre, ganhavam presentes? Não ganhavam. E isso acabou comigo.

Então, desde cedo, as duas maiores ambições da minha vida eram o acordeon e as crianças. Eu queria ajudá-las de alguma forma. Meu avô dizia que eu poderia ser uma grande artista. Uma cantora à moda antiga, com meu acordeon e com a minha grande fortuna, ajudaria todas elas. Eu adorei a ideia.

O Acordeon era pesado. Era difícil de ajustar nos meus braços pequenos. Eu nunca fui das pessoas mais jeitosas e delicadas. E eram muitos movimentos para serem feitos. Movimentos demais. Mas eu não desistia. Treinava muito. Tentava me adequar usando outros instrumentos. Piano. Teclado. Violão. Fui a todas as apresentações de acordeon que podia, para ver os grandes. Aprender com eles. Meu avô a tira colo,  admirado com o meu empenho.

Um dia,  fui nesse sarau e era um lugar lindo. Uma montanha azul do lado. Um cheiro de café que se espalhava no ar. Uma paz. Tinham umas lamparinas espalhadas pelo pequeno palco e o moço que tocava tinha a mesma paz que meu avô, bem ali, nos olhos fechados, no meio sorriso. Cheguei em casa e escrevi sobre isso. Não vi outra forma melhor para me lembrar para sempre desse dia, do que colocá-lo no papel.

E começou a ser sempre sim. Sempre que eu via uma coisa bonita, que conhecesse alguém legal, que observasse uma cena tocante, eu escrevia sobre ela. Cada vez mais, eu deixava meu acordeon no canto da sala, e me voltava para o meu bloquinho. Toda vez que não conseguia uma nota, que errasse um movimento, eu escrevia sobre algo que me deixasse feliz.

Até que escrevi esse livro. Um livro pequenininho, sob uma menina e seu acordeon encantado. Quando ela tocava, todas as pessoas esqueciam seus problemas e dançavam de braços dados. Nesse tempo, eu não era mais menina e não tinha mais acordeon. Eu precisei vender para ajudar a publicar meu livro. Mas meu avó ainda tinha o seu. E ainda me inspirava, cada vez que eu o via.

Ele apareceu, no dia da estréia. Eu estava cercada de crianças que ouviam tão atentamente que chegavam a escutar, ao fundo, o acordeon tocando. Ele esperou a história terminar. Esperou elas me abraçarem e pegarem um livro. Esperou elas irem embora.

Eu me desculpei. Por ter largado o acordeon, por não ter insistido. Por saber, no fundo, que com livros eu nunca ia ter como ajudar todas as crianças que eu queria. Ele riu fraco. Baixou a cabeça.

“O acordeon é só um instrumento. Ele pode ser qualquer coisa, minha neta. Você encontrou seu acordeon. Um que toca sonhos. E, para as crianças, vale mais do que qualquer riqueza”.

E eu percebi que, no fundo,  nós dois estávamos tocando. Com os olhos.

Acendi um cigarro com certa dificuldade, enquanto uma chuva rala caía sobre a cidade e fazia com que as pessoas corressem de um lado para o outro. "Estúpidos. É só uma chuva", pensei. Andava calmamente pelas ruas do centro da cidade, tragando com certo alívio meu marlboro red. Pouco tempo antes, você me dizia que eu era um erro que deus ou qualquer outra força maior, por engano, permitiu existir.

Dentro do carro, você gritava, como se eu não estivesse ali, exatamente do seu lado. Enquanto você berrava qualquer estupidez e xingava a minha mãe, eu olhava pela janela. Observava os pequeninos pingos da chuva que, ainda tímida, caía do céu. Olhei pra você e lembrei de como foi te conhecer, há três anos atrás.

Eu perguntei se você se lembrava como tinha me conhecido e você disse que lembrava e que foi quando a sua vida começou a se transformar em um inferno, porque, você falou, eu era a pior das putas que você já tinha comido. Eu tentei não rir, mas esbocei um sorriso. Você me chamou de vadia e me bateu.

Foi nessa hora que eu abri a porta do carro, te xinguei de alguns nomes e fui andando sem rumo. Você foi me acompanhando, enquanto gritava como eu era feia e que iria morrer sozinha, porque eu era uma puta. Continuei andando e você foi embora. Eu não iria morrer sozinha, enquanto tivesse um maço de marlboro red.

Fiquei tentando pensar no que tinha feito de errado. Será que foi demais abrir mão da minha vida para viver a sua? Quero dizer, a gente se conheceu na rodoviária e eu decidi nunca mais voltar pra minha vida idiota. Mas, agora, penso, minha vida idiota era muito melhor sem você. Sem seus ataques e surtos. Sem suas exigências. Você nunca me amou. Você só queria alguém que te obedecesse.

Será que eu era mulher demais pra você? Será que eu tinha opinião demais, falava demais? E, por isso, eu era uma puta, feia, inútil? Continuei pensando nisso, enquanto pedia uma passagem para o Rio de Janeiro à atendente.

Ela me olhou com pena quando viu o roxo do meu olho. Meu marlboro estava quase acabando. Será que eu errei ao aceitar me submeter a todas as suas fantasias sexuais? Inclusive, às que, no fundo, eu não queria? "Obrigada, o ônibus sai em 10 minutos", ela falou. Obrigada, quis dizer, mas só sorri.

Mais um cigarro. Será que eu estou errada? Último trago e entrei no ônibus. Será que, afinal de contas, eu sou mesmo uma vadia? Sentei na poltrona, abracei minha mochila e chorei.

Abri os olhos e vi o horizonte com um pôr-do-Sol lindíssimo. Vitória é linda. Sorri. Será que a culpa é minha?

Suspirei e decidi aceitar uma verdade que neguei durante três fodidos anos. Não, a culpa não é e nunca será minha.

Um sensação de redenção me invadiu naquele momento. Então, prometi a mim mesma: a partir de agora, as coisas vão mudar.

Ele não é meu. Eu nunca tive essa pretensão. Na verdade, quando o conheci, fiz de tudo para me afastar. Achava que era treta. Sabia, porque eu já tinha passado por outras. E é mesmo, mas de um jeito bom.

Ele sempre vem sorrateiro. Nunca avisa muito, mas faz questão de perceber se é bem vindo. Às vezes, ele fica muito. Enrola, dorme. Outras, ele só quer mesmo um cheiro, uma agarro. E vai embora tão silenciosamente quanto chegou.

É o rei de me fazer sorrir quando tudo me falta. Já chorei mágoas com ele. E ele comigo. Isso só fortalece. Ele ouviu alguns dos meus piores medos e maiores segredos.Não conta pra ninguém. Como eu disse, ele é discreto.

Às vezes, sinto que somos de mundos diferentes, mas que, de uma forma complexa e engraçada, nos entendemos bem. Ele consegue me decifrar. Minhas pequenas formas de demonstrar interesse ou afeto. As formas que outros, mais experientes ou conscientes que ele deixam passar. Os meus olhos fechados quando quero chorar, ele percebe. Não sei como ele aprendeu tanto sobre mim, mas tenho um pequeno palpite. Ele quer. Ele quer me agradar, se importa e isso muda tudo.

Não diria que ele é perfeito. Nossa, como ele me irrita. Quando acha que sabe de tudo, quando me desafia, quando me deixa de lado. Quando não faz o que eu quero. Mas eu tive que aceitar suas individualidades, deixar ele ser livre, para que fosse pleno. Ele voar, para voltar para casa. E ele volta, porque sabe que pode partir. Que não tem amarras, que não tem cobranças. Só carinho, só saudades. Amor.

Poderia ser o relacionamento ideal e talvez seja. Mas o Snoopy… Ele é um cachorro. E é da minha irmã. E talvez isso seja a única barreira entre nós.