Foto: Isabella Mariano
Deu partida no carro. Rua escura, farol aceso. Passou a primeira, a segunda marcha. Virou à terceira esquina. Pegou o retorno, enquanto se despedia mentalmente do que acabara de vivenciar. Sabia que, uma hora ou outra, independente do que fizesse, as coisas voltariam a parecer deprimentes. "A vida tem mecanismos que funcionam alheios a nossa vontade". Tinha essa teoria.

Há universos paralelos dentro deste mesmo universo, você costumava dizer. E explicava que nós os experimentávamos quase que cotidianamente. Era como naquele filme do Bertolucci que você assistiu aos 14 anos. O mundo estava um caos, um desastre rumo a autodestruição, mas aí - de repente - tudo fica bem. E você se junta a seus amigos e não consegue fazer outra coisa se não rir, enquanto sente que seu coração vai explodir de tanto amor.

E não havia por que se culpar dessas coisas. Você entendia muito bem que esse era o rumo natural da vida e que perdia quem não se entregasse de coração a esses pequenos flashes do paraíso. Qualquer coisa de incrível acontecia quando as almas se encontravam. E isso era como um coma. Em algum momento, você se lembraria da constante e crescente miséria do mundo e se entristeceria por isso. Como o fez centenas de vezes.

Sentindo o peso da existência, tentaria reagir. Faria uma passeata, quebraria uns vidros, xingaria, discorreria sobre este ou aquele tema. Escreveria poemas, faria tatuagens, tomaria um porre de vodca. Mas, aí, de repente, você encontra alguém - ou alguéns - que só te faz pensar em como a vida pode ser incrível. Em como existem pessoas maravilhosas. Em como há esperança. E fica submersa num mundo utópico, cheio de esperanças e amor.

Eram mais de duas horas da madrugada e você estava sem o documento do seu carro. Ele estava em algum lugar, mas não com você. Então, tinham uns carros da polícia e alguns policiais fechando a pista. "Merda!", pensou. Saiu, em segundos, do seu universo paralelo, lembrando das leis, das punições e dos medos que regiam um dos mundos no qual você vivia.

Desacelerou, olhou para frente e passou devagar, na expectativa de que esse universo colaborasse com você. "Estou chegando em casa, vai", como se pudesse convencer o destino. E foi aí que, de repente, estava em casa, preparando-se para mais uma noite de sono.

Por alguma razão que desconhecia, o universo resolveu colaborar. Dessa vez.

Texto por Mariana Borba

- Prefere este ou quer outro sabor?

Falou com aquela voz rouca curtida no vinho. Era um grave que, se dito de surpresa, como ali, fazia subir e descer frios pela espinha, percorrendo tudo, sem pressa. Alguns cigarros mal tragados na adolescência aumentaram esse efeito. Malditos cigarros das tosses descompassadas.

- Não dizemos sabor. Para incenso, é fragrância. Gosto daque
le azul ali...
- Não dizemos a cor do incenso. Não seria também fragrância?
Subi os olhos para aquele menino debochado. Já abandonara as bermudas há tanto e, mesmo assim, sorria-me como antes. Era assim agora. Nossos cafés em sua casa se transformavam em análises não pagas. Éramos os piores psicólogos melhorados do Rio de Janeiro. Convencemo-nos disso com o tempo. 

- Pois bem. Não troque, está bom assim. O que te aflige nessa tarde? – Perguntei sem muita aflição.
- Nada.
- Nada mesmo? Como quiser. Vou-me então.

Por vezes, ele não comentava de si e fingia não se importar com o que eu dizia. Era como tratar de um garoto, um moleque, um piá... Como sofrem os psicólogos de finais de semana!
Peguei minha bolsa e o observei de canto de olho, enquanto ele suspirava sem dizer uma palavra. Balançava a perna, devagar. Parei e cheguei mais perto, batendo na mesa:

- Somos tão ridículos assim?
- O que quer dizer?
- Os nossos problemas estão nessa sala. O meu está de frente para uma xícara de café frio. O seu problema está com a bolsa na mão prestes a te abandonar de novo. Não fará absolutamente nada para me impedir de sair por aquela mesma porta de cinco anos atrás? 
- Como quer que eu responda isso?
- Com a maior verdade que estiver dentro de você. Sem me confundir. Apenas o que sente.
- Está certo. O meu problema finge querer me ajudar, quando quer também sua própria redenção. O meu problema me faz acordar de madrugada procurando seu corpo na cama, só porque achei que senti seu cheiro beirando a fronha, ainda hoje. O meu problema bate a porta como se fosse a última vez e volta, sempre volta. Primeiro, porque precisa saber se estou bem. Segundo, porque não deseja ser infeliz como eu.

Fiquei vermelha. Senti o rubor encontrando as bochechas. Coração na boca. Se aquele silêncio continuasse, ele ouviria meu coração cansado do outro lado da mesa? Olhei com olhos marejados para os mesmo olhos do homem grisalho à minha frente, dos quais não sabia dizer a cor.

- Por que nos fazemos tão mal, Luís? Só queremos deixar de sofrer e aqui estamos novamente. Por que somos ainda presos um ao outro?
- Quer mesmo saber?
- Claro que sim!
- Então. que se inicie a sessão. Vamos descobrir juntos.
Respirei fundo. Sorri meio contrariada por não conseguir contrariá-lo. Quase nunca. Sua calmaria me fazia repousar em meus pensamentos.
- Vera, só me faça o favor. Não vá embora de verdade. Se acordar e vir que você não esteve aqui trocando a água das minhas plantas, morro de pensar que não ouço o tapete da sala sendo esmagado por seus sapatos, antes de você entrar. Se entra e não assobia uma canção tranquila e não me sorri pelo jornal que carrego em mãos, não sei o que faço, nem como. Faz mal a mim que você não me venha. Enquanto não encontramos o bem, trataremos o pior.
- Conta daquele dia em Angra... Te chateou com o barqueiro por causa da Renata? Desde quando ela te tratava daquele jeito?

Sorriu como a criança que era. Fingiu não ter falado aquelas últimas coisas no tom desesperado que não lhe era comum e continuou a narrativa. Seria assim, então, trataríamos do pior, para melhorá-lo, afinal.


Mariana Borba é nossa "estranha-conhecida". Conhecemo-nos por acaso. A escrita nos uniu e, cheia de poesia e amor pela literatura, ela veio trazer mais diálogos e histórias para o nosso blog. Mariana, também, escreve poemas e é a nossa convidada do mês.
foto: Juane Vaillant
Tem gente que nasce com essa coceira no pé. Não quer ficar, quer partir. Nem sempre sabe o destino. Na verdade, quase sempre não sabe o destino. Um dia, em uma aula qualquer de geografia, fica hipnotizada por um globo terrestre que gira sem parar. A professora para o globo com um dedo e mostra o lugar onde você está. E você se sente pequeno, muito pequeno, diante daquele mundo em miniatura. 

E daí pra frente, a coceira no seu pé só aumenta. Você começa a andar mais a pé. A dormir fora de casa. Você quer mudar de casa. Você faz amigos por toda parte. Clica em todos os anúncios de intercâmbio, estudar fora, viaje pelo Brasil,  couchsurfing, congressos. Suas mãos ficam nervosas em frente ao computador, procurando por algo que tire as suas limitações, que aumente sua vontade. Que te levante. 

E, um dia, você conhece um peregrino. Alguém que já foi. Alguém cujo o pé coçou mais cedo. Que as mãos ficaram mais nervosas. Que o coração bateu muito, muito forte e simplesmente não deixou ele quieto no lugar. 

E ele te diz que não pensou muito. E diz que nem tudo estava planejado. E que no meio da viagem ficou sem dinheiro. E que as vezes acha que vai ficar uma semana e fica um mês, e que as vezes pensava em ficar muito, mas vai embora logo que chega. Seu pé começa a ficar inquieto ao ouvir. 

Aí, você vê ele descobrindo a sua cidade e a descobre um pouco mais. E você sai da sua rotina porque existe essa pessoa, sem rotina nenhuma. E você vê com seus próprios olhos o quanto a viagem dele é imprevisível. Imprevisível e maravilhosa. Confirma sua teoria sobre atração de energias. Ele consegue conhecer quase todas as pessoas que você admira na cidade e escapa, por um tris, das que não valem apena. 

E ele consegue ir aos seus lugares favoritos. E você conta pra ele sobre os momentos que viveu naquela praia, naquela rua, naquela casa, ou naquele clube de adolescentes. E você percebe o quanto quer criar memórias em outros lugares. Olhar para uma foto e não ver apenas uma praia linda, mas a praia onde você fez uma fogueira com o dia clareando. Não uma avenida, mas uma avenida onde você dançou valsa com um desconhecido. Aquela pedra não é só uma pedra no mar. É uma pedra onde você fez uma cabana de toalha com um novo amigo. 

E você pensa que as viagens são feitas só de chegadas. Mas um dia  ele te diz que se acostumou com a cidade. Com as pessoas, com as ruas, com as cores, com o ar, até com o labirinto. Que amou e foi amado por aqui. Que as conexões superaram as expectativas. Que lhe aperta o coração, mas ele tem que partir. Ele é um peregrino, lembra? 

Você fecha os olhos porque não quer olhar no olho. Você respira fundo porque quer pensar. Você sorri porque entende. Você abre os olhos porque quer se despedir. 

E você pensa. E aí, eu estou pronta para peregrinar também? 

O maior medo que ela tinha era o de ser esquecida. Para ela, o esquecimento é pior do que a própria morte. Talvez, muito talvez, porque reconheça, no próprio 'olvidar', o fim. Por isso que, quando decidiu ir embora, Alice chamou todas as pessoas por quem ela gostaria de ser lembrada para uma reunião de despedida.

Dos mais de dez convidados, foram quatro. Uma das amigas precisou ir embora lá pelas 22h, porque tinha marcado de ir a um show de uma banda chata com uma pessoa legal.

E Alice não parava de acender e terminar seus cigarros.

Enquanto a música tocava e todos se divertiam, eu notei qualquer coisa de triste em seus olhos. Como quem força um sorriso para não chorar.

- Que houve, meu bem? - perguntei.

Balançou a cabeça e sorriu, tomou mais um gole da cerveja e levantou o copo. Brindei e fiquei rindo, tentando entender o que se passava naquela cabeça. É certo que Alice não se encaixava em nada. Detestava a faculdade de filosofia, seus colegas de turma e seus professores. Detestava ter que sempre provar que sabia alguma coisa.

Detestava ter que sair nas baladas fingindo gostar das cantadas dos rapazes só para que nunca chegasse, aos ouvidos de sua mãe, o contrário. A verdade era que Alice amava ouvir cantadas sim, mas das garotas.

Detestava que, aos 24 anos, não conseguia ser dona da sua própria vida, como sempre imaginou que seria. Detestava, muitas vezes, - e sentia-se mal por isso - o próprio convívio com a mãe. E, então, foi embora. Não que tudo isso fosse perceptível, muito pelo contrário. Alice sabia ser discreta e disfarçava todo seu desconforto com piadas e ironias engraçadas. E todos sempre riam.

Acontece que, mesmo que eu também achasse graça das suas histórias, conseguia encontrar nos seus olhos qualquer verdade, como se ela realmente quisesse me contar. Como se ela, realmente, quisesse ser compreendida.

Então, já no ponto alto da noite, quando todos estavam bêbados, perguntei novamente o que estava acontecendo. E, com uma lágrima na entrelinha do sorriso, Alice me respondeu:

- Não quero que me esqueçam.

Não poderia garantir nada em nome das outras pessoas e nem queria ter que dizer qualquer coisa estúpida só para que ela se sentisse bem. Então, das opções, só me restou dizer a verdade:

- Bom, eu não vou.


Todas as histórias de um escritor são sobre ele. Sobre suas diversas formas de ser e ver o mundo. Mas ele tem que começar por algum lugar. Algo tem que fazer ele levantar da cadeira e seguir. Para mim, sempre foram as prateleiras. 

Antes do amor pelos livros, veio o amor por elas. Olhar para as prateleiras sempre me fez bem. Era, para mim, uma representação de mundo bem maior do que o mapa - confuso e cheio de interesses políticos. Todas aquelas cores, tamanhos, texturas e nomes exóticos de autores eram um prato cheio para uma criança. Uma criança estranha como eu, claro.

Todas as vezes que tinha uma festa na casa do meu tio eu me animava. A perspectiva de entrar no escritório dele e me deparar com aquela infinidade de livros em todos os cantos era emocionante, mesmo que eu não fosse escolher nenhum livro no fim das contas. 

Depois de anos fazendo isso quase todo mês, os livros das prateleiras que eu alcançava foram acabando. Mesmo que, nesse ponto, eu já tivesse a mesma altura que tenho hoje, não era o bastante para ir na bendita prateleira de cima. Peguei uma cadeira e subi. Descobri que ali ficavam alguns livros de direito do meu tio - que pareciam ser bem importantes -, coleções clássicas  e alguns livros avulsos. Eu não entendi a lógica da organização, mas isso nunca foi meu forte. Larguei de mão.

Dentre esses livros, estava ele. Um livro de capa amarronzada, com desenhos que pareciam, ao mesmo tempo, infantis e complexos. “Palavras Andantes”, um título que adorei de cara. Nada no mundo é mais veloz do que as palavras. Nada pode andar tanto quanto ideias, histórias. “Eu colocaria esse título em um livro”, pensei comigo mesma.  Mas o autor era um tal de Eduardo Galeano. O nome “Eduardo” não soava sério e prestigioso como “Machado”, “Leon”, “John”, “Frederic”ou tantos outros que eu lia com uma certa distância polida. Era maroto, faceiro. Como um colega de escola, que poderia me falar algo que eu achasse demais sem parecer pretensioso.

Peguei o livro e devorei. Embora tenha demorado um tempo considerável para devolver. Lia cada um dos seus contos-lendas-anedotas várias vezes, tentando extrair tudo dele. E, quando o livro se foi, eu fui atrás de tudo que eu pudesse sobre esse tal Eduardo.

Descobri que, assim como muitos autores latinos, apesar de muito prestigiado mundo afora, ele tinha ficado meio esquecido aqui nas terras tupiniquins. A velha síndrome do colonizado. E que, embora Galeano tenha suas raízes políticas bem fortes, sua mensagem principal era a tolerância. Que ele era a favor da liberdade acima de tudo e contra os preconceitos mais do que tudo. Descobri, também, que ele não tinha seus trinta anos, como eu podia imaginar, mas que tinha preservado toda a sua juventude em forma de esperança nesse mundo caótico e lindo. 

Ontem, quase dez anos depois de ter andando com suas palavras, eu fui dormir com um apertinho no coração. Aquela criança que subiu nas prateleiras almejando alcançar o céu encontrou muita gente incrível feita de papel e tinta. Mas poucos vão deixar uma lacuna tão grande quanto aquele senhorzinho de olhos faceiros. Suspirei e fechei os olhos. "Pode deixar Galeano, eu nunca vou deixar de caminhar".

Ela era o tipo de pessoa que não gostava de jogos e indiretas. Ela falava. E sempre fazia questão de deixar tudo vir a tona. "Por que vocês não se beijam logo?", disse, uma vez, a dois amigos que estavam se falando todos os dias há semanas, mas nenhum dos dois tomava a iniciativa. Ela tomou e eles se beijaram.

Ela era assim. Se alguém tinha algum problema com ela e tentasse mandar indiretas, ela ignorava até o dia que acontecesse um encontro casual, nos bares da vida, para ir à pessoa e dizer: "Ei, qual seu problema comigo?". Não sabia esconder as coisas. Talvez, por morrer de medo de ser enganada, é que ela procurava dizer sempre o que sabia, o que pensava.

Ela era a desbocada, a implicante do grupo, a que afastava pessoas por falar coisas que todos preferiam não saber, não encarar. É certo que nem sempre ela dizia verdades por ser "a coisa mais certa a se fazer". Na maioria das vezes, ela via graça, e certo prazer, em perceber que, ironicamente, a verdade incomodava. As pessoas ficavam desconcertadas.

Às vezes, era bom. Às vezes, magoava pessoas. Mas ela não tinha esse crivo, essa moral. Para ela, as coisas não tinham como ser de outra maneira.

Por isso, quando ele disse que iria deixá-lá, ela ficou completamente desestruturada. Menos pelo fim em si e mais por descobrir, numa só noite, verdades que nunca havia percebido antes. E provou da sua própria droga pela primeira vez.

- Você diz sempre o que quer e parece não ler o que está exatamente embaixo do seu nariz. Você bagunça a vida das pessoas e esquece de organizar a sua. Você é inconsequente. Egoísta, prepotente, pedante. Sim, eu te amo apesar de todas essas coisas, porque me apaixonei por uma pessoa que você guarda a sete chaves. Uma pessoa que, por sorte, pude conhecer bem. Mas tem ficado insuportável a nossa convivência e eu preciso ir.

E ele foi embora. Por um momento, ela pensou que tinha sido melhor assim, que estava tudo bem, que ela era maior do que tudo isso e que ninguém era insubstituível. Depois chorou. Muito.

Chorou por dias até perceber que havia chegado a hora de expor seus próprios medos e encarar suas próprias verdades.

Eu me lembro como se fosse hoje, com muita clareza.

Eu não ia dormir na casa dele, não aquele dia. Ele ia fotografar um rock, eu tava fazendo um bico no bar. Nos encontramos por acaso. Estávamos naquela fase solta, de não rotular, de não marcar, apenas deixar rolar. E o acaso vinha nos dando ocasionais forças. Eu dei uma bebida para ele de graça. Ele tirou uma foto quase espontânea de mim. Parecia tão natural, tão simples.

No outro dia, eu acordei com o despertador martelando minha cabeça. Droga! Já era hora de levantar para trabalhar. Para o meu emprego de verdade. Levantei num pulo e comecei a me arrumar. Ele me olhou, meio sonolento, meio rindo. Eu dei um selinho rápido e sai correndo. Jogando a chave por de baixo da porta. Fui fazendo minha maquiagem de qualquer jeito no ônibus. Não era todo dia que fazia, mas a cara de ressaca estava saltando dos meus olhos. Acertei o cabelo e vi que estava sem meu brinco. Como eu adorava aquele brinco. Essas pedrinhas que parecem coisa de Vó. E era mesmo. Da minha, que tinha deixado comigo.

Fiquei pensando no brinco o dia todo. Mas era tão, tão clichê dizer que esqueceu o brinco. “Oi, posso passar ai pra pegar meu brinco”. Típico. E nesse mundo moderno com laços tão frágeis, um mero sinal de apego espanta o outro.

Por fim, disse. Disse que era de ouro e era da minha avó. “O.k. eu levo no seu trampo pra você.” Ele respondeu naturalmente escorregadio. Eu fiquei na verdade bem feliz, de não ter que ir lá pra pegar e ficar parecendo uma forçada de barra. Mas fiquei mais feliz ainda por não ter que pegar um ônibus no sol quente pra fazer isso. Na hora de entregar, ele me chamou pra sair, assim como quem não quer nada, qualquer dia desses... Me empolguei um pouco, mas demonstrei menos do que senti. Mais um clichê. Mais um para a lista da A.B.N.T dos relacionamentos.

E, agora, mais de um ano turbulento depois eu estou aqui. Parada na frente do celular, tentando procurar uma forma de falar com você. E preciso falar isso diretamente para você. Foi apenas uma briga besta. Uma coisas simples. Mas tão simples, que me fez perceber o óbvio. Se você não consegue entender as coisas que quero dizer, se não podemos ter uma conversa minimamente civilizada após um desentendimento, é porque não está certo. Se não existe intimidade, cumplicidade, não existe mais nada, meu caro.

Não queria ouvir sua voz. E você, sem delongas, me pediu para me afastar. Estranho eu pisar em ovos para falar algo tão banal com alguém que conhecia há tanto tempo. Estranho, mas previsível. Então apenas escrevi. Foi direta. “Sei que você pediu para não incomodar, mas, aqui, devolve minha coleção de Star Wars.”

Idealizou todo seu discurso. Naquele dia, completava um ano desde que vencera as eleições do condomínio e se tornara, enfim, o Síndico do Prédio. Jorge era o filho perfeito do funcionalismo público. Passou em um concurso aos 18 anos e, desde então, trabalhava diariamente na seção do protocolo do tribunal de justiça do seu estado. Entrava às 8h e saía às 17h, com uma hora de almoço. Eram 32 anos, dos quais ele muito se orgulhava, ajudando a máquina pública a funcionar perfeitamente.

Durante a reunião entre os condôminos, ele deveria fazer o balanço de suas ações, mostrando com planilhas e gráficos e alguns números como ele tinha sido não um, mas o Síndico. Primeiro, ele analisou todos os dados e pensou em só fazer uma breve fala. Quando deu por si, já estava escrevendo, palavra por palavra, do que iria dizer.

Depois de tudo escrito, ele pensou que poderia passar alguns minutos elogiando algum dos funcionários do prédio. Pra fazer uma média. Lembrou logo de Marcos. Um jovem que, há cinco anos, havia largado sua carreira para se tornar porteiro. Nunca entendeu bem o motivo. Mas, por ser o mais elogiado pelos moradores, não havia outro nome a ser citado em seu discurso.

- ... E tudo isso não seria possível, sem a graça, a cordialidade e a simpatia de sempre de nossos dedicados funcionários. Especialmente, do inoxidável porteiro Marcos. Sua dedicação é admirável. Parabenizo a você por tornar o nosso lar um ambiente cada vez mais convidativo e cheio de alegria. Deixo aqui, meu elogio à sua fealdade.

(palmas)

Jorge, apesar de ser completamente analítico - efeito colateral do funcionalismo público, talvez -, gostava de improvisar. Gostava da sensação de, sem querer, acertar e, mais, de ser muito elogiado por seus improvisos. Como se aquilo provasse, de alguma forma, que ele era bom "de natureza".

Acontece que Jorge não sabia que o tal do Marcos tinha cansado de dar aulas de português em escolas públicas e decidiu entrar para o setor privado, como porteiro de um prédio de luxo. Não foi tão difícil. Ele sempre se destacava nas entrevistas, já que ele conseguia ser, além de muito inteligente, muito bonito. Não uma beleza extravagante, mas uma beleza sofisticada, sutil, aliada a um sorriso que mudava o humor de qualquer um.

Por não saber disso é que Jorge perdeu um de seus melhores funcionários. Tinha ouvido ou lido a palavra "fealdade" em algum lugar. Era tipo de palavra que a gente não sabe, realmente, o que significa, mas imagina alguma coisa. E Jorge imaginava que era algo bom. Melhor ainda do que "bom", maravilhoso.

Já Marcos sabia bem o significado da palavra. Não só sabia, como a detestava. Certa vez, ainda professor, um de seus alunos quis fazer uma brincadeira e o testou, querendo saber o significado de "fealdade". Ele não sabia, na época, e bom... improvisou. Acontece que o aluno já havia pesquisado e o desmentiu na frente de toda turma - o que causou um surto esquizofrênico em Marcos que o fez ser demitido por justa causa.

Por isso, ele decidiu ser porteiro. Porque, imaginava, que ninguém o testaria se ele conseguisse ser cordial e gentil o tempo inteiro. Dias depois do discurso, Jorge recebeu uma carta de demissão que continha apenas:

"Fe.al.da.de
1. Qualidade de feio. = FEIEZA, .FEIURA ≠ BELEZA, FORMOSURA.

Solicito minha exclusão do quadro de funcionários imediatamente

Att,
Marcos"

O que aconteceu depois foi óbvio: Jorge nunca mais foi eleito.

Aquela pequena grande cidade sempre foi caótica. Todas as coisas não pareciam fazer sentido entre si. Cada pessoa andando para um lado. Cada mente com um sonho. Mesmo que eles fossem, eventualmente, levados na mesma direção. Ninguém sabia, ninguém falava sobre.

E eu… Eu me sentia mais sozinha ainda. Andando por aquelas ruas que eu conhecia tão bem. Passando pelas mesmas lojas, as mesmas praças, as mesma árvores. Eu me sentia estrangeira. Ou temporária. Como se nada do que eu fizesse por aqui fosse durar. Como se a cidade em si não fosse durar.

E, nesse dia, eu entro no ônibus e vou olhando para janela sem ver nada. Apenas borrões. Eu chorava de raiva. Raiva por não encontrar um motivo sólido e concreto para a minha constante chateação. Desânimo. Com o mundo, com os amigos, com os relacionamentos.
O ônibus para na frente de um muro. Nele, umas letras garrafais e tremidas dizem: “Amor, volta pra mim, só um pouco”. E uma tag assinava a poesia concreta marginal. Odiei. Odiei ver uma declaração tão simples e direta que pode custar, dependendo das circunstâncias, bem uns três mil reais - ou mais.

No meio da minha raiva por essa demonstração pública de amor, comecei a rir. Percebi, assim, qual era o motivo da minha grande insatisfação. E era provavelmente, por achar, que na minha vida, nada era direto. Nada era simples. Tudo tinha grandes poréns que eu não sabia pra que serviam e onde me levavam, afinal. Chateada eu estava, por não ter ninguém em minha vida por quem eu pudesse pixar um muro. Nem por mim mesma.

Consigo sentar no ônibus e isso me alivia. É sempre uma sensação de conquista um acento na janela dentro de um ônibus lotado. Agora o ônibus está devagar. E devagar consigo ver as mesmas lojas, ruas, praças e árvores. Vistas assim, como algo que passa, me bateu um aperto do peito. Um medo de que, no fundo, o que mais me irritasse na cidade é o fato de gostar tanto dela. Mesmo tendo tantas, tantas coisas que eu mudaria.

Encosto a cabeça na janela. Com os olhos semi-cerrados e a vista embaralhada pelo balanço generoso do ônibus, consigo ver essa tag, esse desenho, meio representativo, meio abstrato, desenhada de verde. Sorri. Eu conheço a pessoa que fez isso. E ela é uma pessoa tão legal. Me sinto parte, me sinto desperta. E me sinto mal, por ter odiado, mesmo que por segundos, aquela pobre declaração de amor.