Terapia de in[c]ensíveis


Texto por Mariana Borba

- Prefere este ou quer outro sabor?

Falou com aquela voz rouca curtida no vinho. Era um grave que, se dito de surpresa, como ali, fazia subir e descer frios pela espinha, percorrendo tudo, sem pressa. Alguns cigarros mal tragados na adolescência aumentaram esse efeito. Malditos cigarros das tosses descompassadas.

- Não dizemos sabor. Para incenso, é fragrância. Gosto daque
le azul ali...
- Não dizemos a cor do incenso. Não seria também fragrância?
Subi os olhos para aquele menino debochado. Já abandonara as bermudas há tanto e, mesmo assim, sorria-me como antes. Era assim agora. Nossos cafés em sua casa se transformavam em análises não pagas. Éramos os piores psicólogos melhorados do Rio de Janeiro. Convencemo-nos disso com o tempo. 

- Pois bem. Não troque, está bom assim. O que te aflige nessa tarde? – Perguntei sem muita aflição.
- Nada.
- Nada mesmo? Como quiser. Vou-me então.

Por vezes, ele não comentava de si e fingia não se importar com o que eu dizia. Era como tratar de um garoto, um moleque, um piá... Como sofrem os psicólogos de finais de semana!
Peguei minha bolsa e o observei de canto de olho, enquanto ele suspirava sem dizer uma palavra. Balançava a perna, devagar. Parei e cheguei mais perto, batendo na mesa:

- Somos tão ridículos assim?
- O que quer dizer?
- Os nossos problemas estão nessa sala. O meu está de frente para uma xícara de café frio. O seu problema está com a bolsa na mão prestes a te abandonar de novo. Não fará absolutamente nada para me impedir de sair por aquela mesma porta de cinco anos atrás? 
- Como quer que eu responda isso?
- Com a maior verdade que estiver dentro de você. Sem me confundir. Apenas o que sente.
- Está certo. O meu problema finge querer me ajudar, quando quer também sua própria redenção. O meu problema me faz acordar de madrugada procurando seu corpo na cama, só porque achei que senti seu cheiro beirando a fronha, ainda hoje. O meu problema bate a porta como se fosse a última vez e volta, sempre volta. Primeiro, porque precisa saber se estou bem. Segundo, porque não deseja ser infeliz como eu.

Fiquei vermelha. Senti o rubor encontrando as bochechas. Coração na boca. Se aquele silêncio continuasse, ele ouviria meu coração cansado do outro lado da mesa? Olhei com olhos marejados para os mesmo olhos do homem grisalho à minha frente, dos quais não sabia dizer a cor.

- Por que nos fazemos tão mal, Luís? Só queremos deixar de sofrer e aqui estamos novamente. Por que somos ainda presos um ao outro?
- Quer mesmo saber?
- Claro que sim!
- Então. que se inicie a sessão. Vamos descobrir juntos.
Respirei fundo. Sorri meio contrariada por não conseguir contrariá-lo. Quase nunca. Sua calmaria me fazia repousar em meus pensamentos.
- Vera, só me faça o favor. Não vá embora de verdade. Se acordar e vir que você não esteve aqui trocando a água das minhas plantas, morro de pensar que não ouço o tapete da sala sendo esmagado por seus sapatos, antes de você entrar. Se entra e não assobia uma canção tranquila e não me sorri pelo jornal que carrego em mãos, não sei o que faço, nem como. Faz mal a mim que você não me venha. Enquanto não encontramos o bem, trataremos o pior.
- Conta daquele dia em Angra... Te chateou com o barqueiro por causa da Renata? Desde quando ela te tratava daquele jeito?

Sorriu como a criança que era. Fingiu não ter falado aquelas últimas coisas no tom desesperado que não lhe era comum e continuou a narrativa. Seria assim, então, trataríamos do pior, para melhorá-lo, afinal.


Mariana Borba é nossa "estranha-conhecida". Conhecemo-nos por acaso. A escrita nos uniu e, cheia de poesia e amor pela literatura, ela veio trazer mais diálogos e histórias para o nosso blog. Mariana, também, escreve poemas e é a nossa convidada do mês.