O amigo e os dias tempestuosos


Eu cheguei nesta escola nova e tudo era pior que minha escola antiga. O espaço era menor, a quadra estava velha, a cantina não tinha sorvete e algumas salas nem tinham ventilador! Eu disse para o meu pai que queria mudar de escola porque eu tinha estudado seis anos na mesma. Foi uma decisão que tomei em segundos, e naquela hora pareceu que tinha sido péssima. Mas, ao contrário das expectativas, eu conheci muitas pessoas transformadoras.

Eu demoro muito para perceber que uma pessoa não é muito querida pelas outras porque afinal de contas eu demoro muito mesmo para ter algo contra alguém. O Luis era muito alto pra idade, não tinha muitos amigos e ficava bem quieto nas aulas. Mas ele era tão engraçado e atencioso quando estava perto de mim que eu não consigo acreditar que as pessoas achassem ele realmente chato. “Pera ai.Vocês já pararam pra conversar com ele?” Eu perguntei um dia, tentando entender.Alguns riram, alguns ficaram quietos, mas alguns disseram, nas entrelinhas e com um ar típico do deboche adolescente: “Ele é gay”.

Eu tinha treze anos e claro que sabia o que isso significava. Mas a parte que eu não entendia era a preocupação das pessoas com isso. “Ta, mas e dai?” Eu respondi realmente intrigada. Se ele fosse o tipo que bate em crianças, xinga velinhas ou não passa cola na prova talvez eu também ficaria com raiva, mas quem ele achava bonito ou deixava de achar não era bem problema meu.

Na época, ele me disse que era mentira.Que as pessoas inventaram que ele era gay, só porque ele nunca tinha ficado com ninguém. A resposta era bem plausível, já que na hipocrisia ambulante que uns chamam de ensino médio e outros chamam de vida inteira, os meninos nunca são “BV” e as meninas nunca “pegaram” mais de três pessoas. Realmente, do jeito que ele era tímido, eu imaginei que ele tivesse dificuldades de iniciar uma conversa com uma menina.

Durante anos ele foi um dos meus melhores amigos.Um amigo para os dias bons, mas principalmente para os dias tempestuosos. Eu vi ele ir conseguindo se enturmar com outras pessoas, perder um pouco a timidez e até namorar. Com uma menina. Quando eu voltei para minha antiga escola, ele voltou também. Nós tiramos as nossas piores notas nessa época. Eu me apaixonei de quase morrer, e me recuperei. Nós fomos nos primeiros “rocks” juntos e choramos juntos na formatura do terceiro ano. E essa loucura do mundo fez cada um ir para o seu canto depois. Fazendo suas coisas. Saindo com novas pessoas. Tomando um rumo e perdendo tantos outros.

E um dia como os outros eu vejo ele no shopping. Com roupas apertadas e cabelo liso jogado para o lado com umas mechas coloridas e gestos espalhafatosos. O grupo dele chamada atenção onde passava e ele estava lindo. E estava de mãos dadas com um dos meninos. Eu dei um “oi” radiante. Luis não retribuiu. Baixou os olhos. Mexeu no telefone. Fingiu que não era com ele. Eu morri de raiva. Fechei a cara e pisei fundo. Absurdo, absurdo! Eu sempre fui amiga dele, ouvi tudo.

Eu não sabia o que mais me deixava chateada. O fato dele não ter falado comigo, ou ele não ter me contado sobre sua sexualidade. Olhei mais uma vez para trás, só para ver a cara de pau dele. Nessa hora, um grupo e meninos vestidos de preto passou pelo grupo dele. Eles riam faziam assobios e gritavam “Menininhas lindas, heim?” Batendo palmas e pisando forte. Se afastaram, calando o outrora alegre grupo. Eu gelei. Me senti pessimamente egoísta. Porque era exatamente assim que eu tinha sido.

Pensei em todas as zoações na escola.Nos apelidos e brincadeiras de mal gosto. Nas vezes que eu defendia. E nas vezes que eu, ser humano que sou, ria. Pensei na força de vontade de luis e em todos os problemas que ele tinha, e que somado a negação de quem ele realmente era, deviam parecer infinitamente maiores. Foi embora do shopping. E embora eu tenha encontrado com ele outras vezes, eu não ousei cumprimentar. Quem se sentia culpada agora era eu.

Outro dia, também bastante comum, eu vou aquele clube de sempre. Pessoas de todos os tipos. Meninas de cabelo raspado, homens com cabelo colorido. Ninguém achava estranho. ninguém tirava sarro. Até tinha alguns babacas enrustidos, mas era fácil de ignorar. Lá estava Luis. O grupo dele faria uma das senhorinhas da igreja do nosso bairro desmaiar. E meu grupo também não ficaria muito atrás. Ele veio, deu um sincero “oi” e perguntou, como tivéssemos ido ontem a um dos rocks de sempre: “Você tem um isqueiro?” Eu sorri. “Tenho”.