Todos os dias eu acordava na esperança de que ela tivesse desaparecido. Abria os olhos lentamente e olhava para os lados. Respirava aliviado por um segundo ou dois. Mas lá estava ela. Me olhando nos olhos.Sem medo,sem pestanejar. Eu tinha medo. Eu vacilava.

Todas as pessoas pareciam saber quem ela era. Não sei se alguém tinha a conhecido tão a fundo quanto eu. Mas eu tinha certeza que ninguém podia vê-la. E isso era o pior. Todas as vezes que eu recusava um convite para uma festa, que deixava de ir trabalhar, que me trancava em lugares inusitados como banheiros de loja ou carros alheios, alguém me perguntava “porque você fez isso?” Eu dizia que era por causa dela.

Eu tinha medo. E tinha nojo. Mas o problema, é que ela era minha. E eu tinha que conviver com isso. Sempre fui do tipo que joga responsabilidades nas pessoas. Que não assume seus atos, que joga para o alto. Eu tratava com sarcasmo e displicência tudo o que parecia ser sério demais, importante demais. No inicio, as pessoas achavam isso engraçado. Como um traço na minha personalidade, um tempero. Mas eu não sou um personagem. Na vida real você não gosta de conviver com o Coringa. Com o Jesse Pinkman. Com o Malfoy. Comigo.

Não que eu me considere um vilão. Não que eu considere todos esses caras vilões. Mas isso só é interessante na ficção. As pessoas pensam que dão conta, mas não dão. Eu pensei que dava conta também. Eu criei, pouco a pouco, em banho maria, toda essa fama, essa arrogância, essa armadura. E quando eu convenci a todos, eis que ela apareceu. Para me bater na cara. Bater de frente. Nunca pelas costas como eu fazia.

E dia após dia eu ficava mais fraco. Mais incapaz. Mais desarmado. Ela me encarava. E eu virava os olhos. Embora eu soubesse, no fundo, que nunca iria escapar.

Não era a Morte. Mas a Culpa ia me matar aos poucos.

Eram 2h40 e eu tinha certeza de que ela iria aparecer. Já tinha passado um café bem forte, pois sabia que lhe agradava o paladar. Peguei uma xícara e deixei que o som do noticiário me fizesse companhia. Pra mim, quando a madrugada chegava, o silêncio era o pior os ruídos.

Encostei o corpo na parede de forma que conseguia observar a rua do alto do quarto andar de um prédio no centro da cidade. Só via um deserto úmido de concreto, escuro e sujo de panfletos sobre promoções de um salão de beleza que ficava na esquina. Sabia, pois todos os dias nos últimos seis meses passava por ali e lia, mesmo sem querer, "pé e mão a dez reais".

Deixei o café esfriar enquanto pensava nessas besteiras. Eu sabia que ela viria. Quero dizer... Dois dias atrás, havíamos nos esbarrado no supermercado. Não sabia bem a diferença entre um alvejante e uma água sanitária e fiquei parado lendo rótulos coloridos que não explicavam muita coisa. Escolhi aleatoriamente, certo de que minhas roupas brancas ficariam ainda mais brancas. Mais branco que o branco.

Quando ia entrando no corredor de produtos de higiene, pude ver seus longos e inconfundíveis cabelos ruivos. Ela segurava dois xampus.

- Em dúvida? - perguntei. Dois olhos gigantes e esverdeados me encaravam. Pareciam incrédulos.
- O que você está fazendo aqui?
- Compras. - sorri - o que mais estaria fazendo?

Ela colocou os dois frascos no carrinho e começou a empurrá-lo. Não entendi por que ela fez isso.

- O que foi? Só quero conversar - disse, segurando seu braço.
- E eu só quero fazer minhas compras em paz. - suspirou e olhou para o chão. Parecia estar um pouco trêmula.
- Tá bem. Vou te deixar em paz.
- Obrigada.
-  Mas antes... queria saber como vai a sua vida. Faz tanto tempo que não nos falamos. Soube que está morando em um apartamento no centro da cidade. Engraçado. Também estou morando por lá. Também ouvi dizer que, às quintas-feiras, você deixa o trabalho cinco minutos mais cedo pra poder tomar um chope em um dos bares mais movimentados do bairro. Soube, ainda, que você costuma voltar sozinha pra casa e quase sempre passa por uma das ruas transversais à avenida principal. Você deveria tomar cuidado. Aquela rua é muito escura às duas horas da manhã.

Ela me olhou. Parecia pálida. Disse que iria conversar comigo outra hora, talvez na próxima quinta, e foi embora, sumindo entre sabonetes e talcos para bebê.

Sorri lembrando da textura de veludo que a pele do seu rosto cheio de sardas tinha.

Eu sabia que ela viria, porque era quinta-feira. Sabia que ela teria entendido o recado. Só queria ajudá-la, protegê-la. Ela precisava vir. Não por mim, mas por ela. Sabia que ela, a qualquer momento, apareceria naquele deserto de concreto e, quando entrasse no meu pequeno apartamento, diria que estava tudo bem e que me perdoava por tudo.

Ela tinha que vir. Ela precisava urgentemente vir. Porque, bom, se não viesse... Se ela não visse, eu não sei o que eu seria capaz de fazer.

Juane Vaillant

Todas as calcinhas dela eram vermelhas e isso não era uma coincidência. Ela sempre andava com uma bolsa enorme e isso também não era por acaso.  Ela tinha uma roupa reserva na minha casa. E eu tenho certeza que minha casa não era a única. Era tudo pensado, tudo calculado. Ela nunca me disse adeus, mas foi embora, como tinha que ser.

Eu a conheci em uma festa qualquer. Ela estava ficando com uma menina, eu com outra. Nossos pares acabaram sumindo noite a dentro e sobramos até o fim da noite dividindo uma garrafa quente de catuaba. Eu nem gostava tanto, mas fiz companhia.

Eu estava tão detonado naquela época. Não parecia ser eu mesmo. Eu era uma espécie de sombra. Eu só consegui conversar com ela porque ela também estava. Porém sabia disfarçar tão bem, tão bem. Ela mesmo acreditava. Dizia que não ficava muito tempo na foça. Que as coisas a atravessavam,apenas. Mas aqueles olhos definitivamente eram de fundo do poço, embora o sorriso e o batom não fossem.

Nesse dia ela me falou sobre a Frida. E sobre a Rosa. E sobre a Cleo. Apelido que ela dava para a Cleópatra. Ela disse que embora ela tivessem enfrentando uma enorme crise em seu governo, fosse excelente em estratégia e altamente culta, só os seus casos amorosos se sobressaíram. “É assim com as mulheres. É sempre assim. Chegar lá não é chegar lá, a não ser que você tenha “alguém”.

Eu nunca ia saber o que era isso. Mas eu fui na wikipédia.Ela tinha uma certa razão. Quando você observa como são retratados homens e como são retratadas mulheres, existe sempre mais destaque para a vida amorosa das mulheres. Como se fosse o caminho óbvio. Como se fosse o objetivo. Ela nunca seria definida por um status. Ser uma citação na biografia de outra pessoa. E eu sabia isso desde o inicio.

“Dizem que ela colocou uma lei, que só ela poderia pintar as unhas de vermelho. A Cleopátra, digo.” Ela disse, olhando para cima, mas para si mesma.

“Você acha isso legal?” Eu perguntei. Não parecia o tipo de coisa que ela concordaria.
“Não, mas eu entendo. Querer ter algo só para si, em um mundo onde nem o seu corpo é. E ela era a rainha. Não sei se eu seria diferente, naquele contexto. Vermelho é vermelho.”  Ela sorriu. Eu já estava envolvido.


Se eu fosse o rei ela também nunca teria ia embora. Nem ela, nem as calcinhas vermelhas.

Engraçado como seu corpo reagia quando ficava desse jeito, sem graça. Ajeitava centenas de vezes o cabelo desajeitado atrás da orelha. Olhava pra baixo, desviava o olhar. Sorria, quase com medo. Eu sabia. Ela queria pedir desculpas pela noite passada, por ter bebido demais e ter dito aquelas coisas. Ela queria dizer que me amava, naquele exato instante.

Achei bonito aquele esforço pessoal para dizer o que queria, então não atrapalhei. Fiquei observando as mãos inquietas. Os silêncios desconfortáveis. Os rodeios que ela fazia enquanto falava sobre o dia em que nos conhecemos.

Tinha qualquer coisa de doce. Não tem como lembrar de Ana de outra maneira. Nem poderia, seria injusto. Com ela, com a memória, comigo. Eu sabia como era horrível pra ela ter que dizer algo, pedir desculpas e esse tipo de coisa que é preciso fazer para que fique tudo bem. Mas, confesso, na maioria das vezes, eu não fazia questão de que dissesse. Mas ela fazia. Ela se desafiava.

Toquei-a. Mão a mão, não há outra escolha. Ela encolheu os ombros como se tivesse ficado mais sem graça ainda depois do meu gesto. Éramos cúmplices, então sabíamos. Tocar-lhe a mão era a minha maneira de dizer.

Disse que estava tudo bem, que ela não tinha com o que se preocupar, que eu também a amo e que o depois sempre fica mais leve com esse sorriso sincero e bonito às oito horas da manhã. Que eu a perdoava e que ela precisava se perdoar, também.

Não disse, na verdade, assim com palavras, como ela insistia  em fazer sempre. Mas ela ouviu o meu toque. Ouvia sempre. E sorriu. E suspirou. E sentiu-se aliviada. E me abraçou. E, naquele instante, a gente se amou um pouco mais.

Juane Vaillant

Era terça-feira. No cinema, ele deixou uma cadeira vaga entre a minha e a dele.


~ ~


Eu olhei para as nuvens. Elas tinham formas de bicho. A maior de todas era uma águia, que pousou na minha mão.


~ ~


Prometi para mim mesma que nunca mais ia beber. Enquanto isso, jogava uma garrafa de cachaça vazia na porta do carro.


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Acordei suando. Olhei para o lado e ele ainda estava ali. Acordado.


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Dois anos antes, ele sentou ao meu lado. O teatro estava vazio e nós não nos conheciamos.


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Coloquei dois gelos do copo e uma bala no revolver.


~~


Eu passei por ele de cabeça erguida. Embora estivesse me rastejando porta a fora.


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Sorri fraco quando passei pela ponte. Eu senti que a cidade era minha pela primeira vez. E justo quando eu estava indo embora.


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Dois passarinhos comeram o resto do meu sanduíche. Eu estava ocupada devorando aqueles prédios.


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Os fogos pipocavam no céu e eu chorei como um bebê. A praia era tão parecida com a que eu sempre ia. Mas aquele lugar não era minha casa.


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O cara parecia perfeito. Até dizer o nome dele. Digo, o seu nome.


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Engoli em seco. Meus olhos roubaram toda a água. “Sim, eu fico.”

  
~ ~


Eu coloquei meus pés na areia. Vinte anos de memórias me molharam.

Revi nossa foto. Aquela velha imagem de nós juntos parece tão nova, agora, olhando assim. Estranho notar a pausa do retrato. É como um talismã, um amuleto que carrega um pequeno pedaço do espírito do tempo. Um pedaço feliz, nesse caso.

Quis chorar, mas só a alma pranteou. Deixei o sorriso estacionado lá, olhando aquela ideia, um reflexo do que passou, calculando quanto tempo demoraria para a saudade começar a arder.

Enquanto o sorriso saudava a recente foto, olhei dentro dos meus próprios olhos. Aquele outro alguém estava tão feliz com você, na época em que você ainda carregava o peso da existência. Nem parecíamos tristes por nossas condições. Só sorríamos.

Foi aí que, por um segundo, Chronos me visitou. Um segundo foi suficiente para que ele me explicasse suas diferentes formas de agir. Falou do tempo cronológico, que passa dia após dia. 5 e 6 e 7 e 8. Falou do tempo como o da foto, das melhores lembranças, do tempo que fica. E falou, ainda, do tempo que é. Do eterno. Além do que se vê. Nessa hora, ele me mostrou você, sorridente. E você me chamou e eu te dei um abraço apertado, choroso, cheio de saudade e amor. Você me disse que estava feliz. E sorrimos de novo, como na foto.

Antes de ir, Chronos me mostrou a foto de um dos seus filhos. E pediu para eu lembrar da metáfora. Fechei os olhos para deixar a lágrima seguir seu rumo e ele foi embora.

Sussurrei como se Chronos falasse por mim: "O tempo que corrói é o mesmo que eterniza". E começou a arder.