Menino do Rio (Doce)



Índio da etnia Krenak as margens do Rio Doce - Fábio Braga
Pequenino eu era quando entrei no rio pela primeira vez. Não lembro ao certo mas minha mãe, essa lembra bem. Diz ela que eu sorri. Que não achei a água fria. Que não estranhei a terra molhada. Do rio eu gostei. Mas tive alguns problemas. Não demorou muito, na aldeia já sabiam: Esse não é dos mais fortes. Pobre desse menino. E não era mentira. Eu não conseguia correr muito. Cabeça rodava e o ar parecia quente. Então quando os outros estavam pulando e correndo pra lá e pra cá, eu estava aqui. Com o pezinho no rio.

Ao lado, no rio, quase sempre estava minha mãe. Trançando o cabelo da minha irmã, ou limpando peixe. Ela dizia que o indío não podia viver isolado, que tinha que ver o mundo ao redor, mas que tem certas coisas, que a gente tinha que manter. Pescar o próprio peixe era uma delas. Era um sinal de respeito. Pelo rio e pelo peixe.

E assim eu pesquei. Já que na beira do rio estava, eu continuei. Eu tinha cuidado pra pegar a isca certa. Cuidado para não matar o peixe na hora. Caso ele fosse filhote, tinha que devolver. Mas não adiantava devolver se ele não fosse sobreviver. Tudo pensado. Eramos nós:a tribo, a terra, o rio e o peixe, parte de uma coisa só.

Quando acordei naquele dia, tentei botar a culpa em mim. Que meu corpo, que já não me obedecia, tinha passado também para os meus olhos sua fraqueza. Não podia ser verdade a água ter virado lama. Não podia ser verdade os peixes fora d’água sem ninguém pescando. meus irmãos já estavam com paus e pedras nas mãos. Iam para a ferrovia. Eu não disse nada. Mas meus olhos disseram mil palavras de apoio. Já que não tinha forças, mem no corpo e nem na cabeça, fui para a margem.

Olhando pra trás, eu vejo que pus os pés no Rio Doce, e acho que nunca tirei. Não como Narciso que deslumbra a própria imagem. Esse homem que me olha nos olhos não sou eu. É o mesmo que tira minhas terras, mata meus deuses, diz que o rio não é meu. Esse é o homem que crava meus pés nessa lama de chumbo e sangue que nunca me pertenceu. Estavamos mortos. O peixe. O Rio. E de muitas formas, eu.