Tinha as mãos e o coração no bolso. Na bagagem, poucas certezas, daquelas que não cabem em posts de facebook. Já as incertezas eram inúmeras, algumas até registradas em cartório. Do que ganhava, pouco ou nada sobrava. Fosse dinheiro, fosse paixão. Era uma péssima administradora. Não queria o fim das coisas, nem falir seus relacionamentos, mas o fato é que, mesmo depois de tanto tempo, não sabia calcular os riscos, nem prever os gastos. Era assim: desapegada e apegada ao mesmo tempo. Foi então que, num instante, decidiu ir. Decidiu, assim, na cara dura, como quem decide comprar pão tendo notado que os que ainda restavam mostravam-se murchos ou duros. E, com uma caixa de ansiedade na mala, já sentindo saudade dos seus e se apaixonando de antemão pelos futuros amores, mais uma vez, ela foi. Só foi.

Havia tempos que não acendia um cigarro. Pobre Ana, sempre em busca de alguma anestesia. Inacreditavelmente, fazia frio na cidade maravilhosa. Vestiu seu fino casaco e, entre uma tragada e outra, esperou o ônibus, solitária.

Evelin optou pelo batom roxo quase preto naquela noite. Já havia bebido duas longnecks enquanto se arrumava. Um short curto, uma blusa rasgada e seu allstar velho surrado. Perfeito.

Alice queria terminar de assistir a última temporada de Breaking Bad, mas Maria Helena parecia realmente triste ao telefone. Um vestido florido lhe bastou.

A protagonista da noite - e de todas as outras noites - pôs-se dentro de seu vestido mais justo. Na boca, o vermelho saltava. Os olhos delineados esperavam as lágrimas que certamente viriam após duas ou três doses de tequila. Jose Cuervo Gold, "porque eu tô merecendo" - disse a si mesma ao se observar no espelho.

- Porra, Lena. Você gosta de ser trouxa mesmo - Essa era Evelin.
- Não fala assim. Às vezes, é difícil deixar quem a gente ama. Te entendo, amiga - Essa era Alice.
- Super entendo - Essa era Ana que, após dizer, riu e virou o resto da cerveja que estava no copo.
- Ele parecia tão sincero no início. Qual é o meu problema? Eu.. - Essa era Maria Helena, já ameaçando chorar.

Ana ouvia o relato choroso de Maria Helena com uma dorzinha no fundo do peito. Estava passando pela mesma situação, mas se negava a compartilhar com as amigas. Negava-se a deixar que vissem sua frustração assim tão de perto.

Alice havia se apaixonado apenas uma vez na vida e foi correspondida por um tempo. Mas agora já não era mais e entendia um pouco Maria Helena, apesar de julgar desnecessários seus ataques exagerados de ciúmes.

Evelin achava graça de tudo. Não entendia a lógica em se envolver com um cara que obviamente é cilada e depois ficar chorando as mágoas na mesa do bar. Para ela, os homens só serviam pra lhe dar prazer e, nessa função, considerava as mulheres muito mais eficazes. Mas, apesar de tudo, tinha empatia pela dor de Lena e decidiu dar um basta nisso.

- Gente, lembra quando a Lena se jogou na frente do carro daquele ex-namorado dela? Quebrou a perna por nada, porque hoje fulano é assumidamente viado. Porra, Lena. Só faz merda - disse Eve, rindo até se engasgar. Ana riu tanto que as lágrimas desceram. Alice riu um pouco e olhou procurando a aprovação de Lena que, limpando as lágrimas, deu um leve sorriso.

- Vai se foder, sua vadia. Posso ser a louca apaixonada, mas e você que depois de acordar na cama com três pessoas desconhecidas me ligou desesperada por uma carona? Que situação - E ria de fechar os olhos.

Beberam juntas uma dose de cachaça e o resto da noite foi assim, de risada em risada, de lembrança em lembrança, de parceria, cumplicidade, compreensão, amor e amizade.

Na ressaca do dia seguinte, Lena procurou o número de ciclano, mas não achou. Evelin havia deletado todas as fotos, números, e-mails e mensagens dele. Maria Helena riu e uma lágrima de felicidade caiu bem devagar.

Izabel gritou de leve na calçada ensolarada a pedir que o ônibus abrisse a porta do meio. Abriram, subiu. Munida de seus cinco filhos pequenos e mirrados de tão fininhos; e uma de colo, negra de cabelos crespos muito loiros e esvoaçados. Izabel esticou-se numa rapidez impensada para que seus pares de braços e pernas servissem de corrimãos e escoras para os cinco pequenos mirrados no chão. Cada um deles arregalava as atenções em busca de assentos vazios para sentarem-se. Nenhum deles achou, nem a mãe. Izabel teve de pedir para acomodá-los no assento preferencial, onde conseguiu juntar num só banco suas cinco crias espertas – que agora já se deleitavam com o vento fresco da janela.

Izabel ficou de pé enquanto várias pessoas a julgavam com o olhar, de cima a baixo. Do chinelo branco encardido ao cabelo crespo alaranjado de sol. Todos. Todos olhavam. Houve até um senhor que usou do olhar gélido para reprovar a quantidade de filhos de Izabel. Ato que não surtiu efeito na imagem calejada dela que, apesar de exalar certa juventude, carregava mesmo era muita vida naquela pele áspera. Saiu de perto dos filhos para pagar a passagem, mesmo sendo vista como ‘uma dessas que pula a roleta quando convém’.

A cada solavanco as crianças riam alto. A cada freada brusca Izabel mantinha-se fixada de frente para sua prole de cinco, com a sexta agarrada em seu colo – não nos esqueçamos da sexta filha. A senhora ao lado das crianças estava visivelmente incomodada com a situação. Decidiu levantar-se então, mas não antes de resmungar baixinho alguma besteira de reprovação sobre a cena. Obviamente Izabel nem lhe deu ouvidos ou olhares. Sentou ao lado dos filhos com a pequena chorona no colo. Chorona porque queria mamar. Izabel sacou logo o peito para fora e aliviou a menina enquanto aproveitava o certo silêncio para olhar o celular.

“Nossa, que isso!”, falou a mulher a prestar atenção na cena. Uma mulher reprovando outra mulher. Essa era a cena. Os homens, dois deles, olhavam era o peito de Izabel com aquela cara de ‘essa mina tá dando mole’. Só que Izabel para ninguém dava confiança. De repente adentra no ônibus uma daquelas marionetes vestidas com a blusa de uma casa protestante de recuperação para dependentes químicos, gritando que o deus cristão salvou a vida dele; que ele agora é um homem correto e livre das drogas – apesar de não entender ter trocado o vício da cocaína pela religião, igreja, cultos…

O homem berrava soltando perdigotos. Um desses foi parar bem no rosto de Izabel, interrompendo a distração dela com o celular. Sim, Izabel reprovou aquela saliva indesejada em seu rosto. Encarou o homem e disse bem alto: Cê cuspiu em mim!. Não, o homem não pediu desculpas. Ele alegou que o deus age por ele e aquele perdigoto foi enviado para ela prestar atenção na palavra do deus. Sim, os passageiros riram todos, menos Izabel, que o chamou de porco nojento e logo recebeu uma resposta: ‘sem deus no coração a gente só padece fazendo coisas erradas e depois pagamos com um monte de filho passando fome’.

Izabel fez o homem descer com as canetas coloridas ainda não mão, escorraçado e acuado. Mesmo na calçada ele continuava a gritar que ela estava pagando pelo escárnio que faz na terra. Os filhos ficaram todos quietinhos vendo a mãe se exaltar e depois voltar para eles. Os passageiros nem sequer moveram um dedo. Aliás, moveram sim, alguns deles estavam filmando tudo com o celular para colocar na internet. A menina no colo de Izabel chorava e chorava tanto que começaram a reclamar, mas Izabel seguiu calada para seu trajeto.

O homem na calçada também seguiu. Foi para a casa jantar com Irene, a esposa, e seus dois filhos adolescentes que ainda não sabem que o pai tem mais quatro filhos largados e abandonados com as ex-mulheres pelo mundo, iguais aos perdigotos que cospe pelas ruas e geram o incomodo de cada dia. Por não saberem, eles acolhem o pai lhe descalçando os sapatos, servindo às mãos a janta e arrumando a toalha para o banho, não sem antes escutar uma leitura bíblica que prega sobre a união da família.

Magalli S. Lima é jornalista e também se atreve a prosear. É uma querida, empoderada e a nossa convidada do mês.

Carolina teve um sonho. Mas antes do sonho vamos falar da vida de Carolina.

Todo dia ela sai de casa as oito da manhã e volta oito da noite.Sua cidade não é realmente uma grande cidade, mas é grande.Ela trabalha em dois empregos e, mesmo que tenha ouvido a vida toda que arte não é trabalho, se sente exausta no final do dia. Carolina não gosta de ir para o trabalho. O problema não é exatamente no emprego, mas no trajeto. Todo santo dia passar por aquela avenida em obra às sete da manhã e ter que ouvir cantadas e desaforos mata seu animo pouco a pouco. Mesmo que tenha uma exposição nova na galeria. Mesmo que um aluno lhe diga que quer ser desenhista. Tem vezes que ela não consegue se animar. A volta não é melhor. Da descida do ônibus até girar a chave de casa ela teme não conseguir chegar a maçaneta. Carolina ama os dois empregos. Mesmo que eles lhe deixem tão cansada. Mas ela murcha algumas vezes. Quando um professor esqueci de deixar lanche para os outros. Quando os artistas não cumprimentam os porteiros na galeria. Quando dizem para seus alunos homens que arte é “coisa de bicha” e para as suas alunas que os grandes e melhores artistas são homens. Ela não vê o porquê disso. Exatamente por ser tão inteligente, ela não entende o porquê de muita coisa.

Mas Carolina vez ou outra sai da sua rotina e vai para outra cidade. Nessa cidade, as mulheres voltam todas juntas do trabalho, da festa, ou de onde for. A segurança física é mais garantida, claro, mas a emocional é que importa mais. E essa fica intacta. As pessoas dessa cidade valorizam todo tipo de trabalho. Eles sabem o quanto é difícil ter um. Ainda mais um onde você se sinta bem. As pessoas conversam. Realmente conversam. Ouvem o que o outro tem a dizer, mesmo que não concordem. Elas pensam no todo. E em si mesmas como parte do todo. Os homens respeitam as mulheres não porque poderiam ser suas irmãs, mães ou filhas.Mas por serem humanas. E as mulheres cuidam umas das outras porque entendem que assim se chega ao equilíbrio.

Voltando ao sonho: Carolina sonhou que as duas cidades fossem lugares distintos. Que ela poderia simplesmente se mudar para a segunda cidade e viver lá para sempre. Mas infelizmente não são. E ela tem que lidar com isso. O mais importante é que Carolina acordou. Tendo plena consciência, de que nenhuma transformação se faz em casa. Muito menos dormindo.

- Foda-se! - falou baixinho como se não quisesse ser ouvida. Levantou e foi até a janela acender um cigarro. Não se considerava fumante e tampouco gastava dinheiro comprando maços de cigarro, mas estava bêbada o suficiente para aceitar o desejo de fumar sem pestanejar.

Ele tinha o semblante cansado, meio triste talvez. Questionava-se mentalmente a razão de ainda aceitar todo aquele drama que, há meses, vinha se repetindo incansavelmente. No fundo, ela estava também um pouco cansada da própria loucura, mas sentia que não tinha forças para fugir do seu papel.

Ele decidiu acender um cigarro também e fumou sentado em sua cama.

- O que tá acontecendo? - ele perguntou.
- Nada. - ela.
- Nunca sei se posso seguir a minha vida, porque você sempre resolve aparecer. - ele.

Silêncio. Tragadas. Fumaças.
Começou a chuviscar.

- Evelin...
- Hm - tinha os olhos marejados. Tentava entender a si mesma. Bater à porta dele às três da manhã, bêbada. Por quê?
- Você sabe o quanto eu gosto de você, não sabe? - Foi só aí que ele notou que ela tinha os olhos cheios d'água.

Ele se levantou. Ela virou o rosto. Ele se aproximou. Ela chorava. Ele a abraçou, pelas costas, e assim permaneceram.

- Você precisa entender que eu gosto de você assim, desse seu jeito. Eu só preciso saber se você permite que eu cuide de você ou se me quer longe da sua vida. Só isso.

Ela tinha o hábito de se autoanalisar e já havia pensado nisso centenas de vezes. Era desgastante. Tinha que lutar contra esse comportamento que, por um tempo, acreditou ser natural, essa mania de se sabotar, de repelir qualquer carinho, de abafar qualquer afeto. Imaginava que fosse algum medo ou alguma coisa assim. E isso fazia com que se sentisse ainda mais estúpida. Deixar de viver por medo.

Virou-se para ele, ainda chorosa, e riu. Ele riu também. Ficaram ali, trocando olhares e fumaças, até que ela abaixou os olhos. Riu novamente porque detestava aquele cordão que ele estava usando.

- Eu queria poder ter mais certeza das coisas. Pra poder ir e me jogar sem medo. Eu sei que é sempre um risco e tal. É que.. - Fez uma pausa. Suspirou. Sentia o coração batendo, reverberando por todo o seu corpo. - É que eu sou meio louca, você sabe. Demoro pra saber o que eu quero, demoro pra ter alguma segurança em alguém. Queria que fosse simples e desculpa as merdas que eu faço. Eu só queria que você soubesse que eu também gosto muito de você.

Eles se abraçaram por um bom tempo, mas começaram a rir porque algum vizinho estava ouvindo Pablo naquela madrugada.

- Comprei vinho hoje. Quer dormir aqui? - ele.
- Quero. - ela.

Ter tempo livre é foda. Dizem que eu deveria aproveitar e voltar a escrever. Talvez eu devesse mesmo. Até tenho algumas coisas naquele caderno e uns outros rascunhos em algum lugar por aqui, mas não lembro onde. Tenho quase certeza que passei alguns para o computador, mas são tantas pastas e arquivos... Caralho! Onde essa merda foi parar? Será que aquele poema que me veio do nada numa noite dessas eu anotei neste livro? Não, nem neste e em nenhum destes aqui. Cadê os meus post its com aquelas idéias para contos? Não acho mais nada, nem o meu caderno eu sei onde está. Será que joguei tudo fora? Eu tinha certeza que estava nesta gaveta ou será que guardei no armário da sala? Melhor mesmo é começar tudo de novo. Mas, primeiro tenho que arrumar essa bagunça e tomar banho, e também dar comida para gata e escovar os pelos dela e tenho aquela louça suja e já estou morrendo de fome. Depois disso, quem sabe eu abra um vinho e volte a escrever, mas só depois, só depois.


Lívia Corbellari é jornalista cultural e também arrisca a escrever algumas crônicas. Está sempre em busca de algo que a inspire a escrever.

Beijamin nunca foi uma criança comportada. Nunca foi calmo. Não comia bem. Chorava muito. Muito. Batia nos mais velhos sem motivo. Arremessava brinquedos pela casa. Ele ouvia muitas comparações entre nós. Eu era obediente. Eu prestava atenção. Eu não bagunçava a casa. Mas apesar dele sempre ouvir que ia “morrer” quando subia em muros, pulava de lugares altos, brincava com fogo e etc, a culpa não foi dele quando um caminhão veio a 130 KM por hora em um cruzamento e atingiu nosso carro.

Meu irmão tinha dez anos e eu tinha doze. Eu só lembro de acordar do hospital e ver um bocado de gente do meu lado. Ninguém realmente me contou. Ou eu estava zonzo. De repente, eu estava num velório ao lado de um caixão pequenino, branco e fechado. Por dias, ninguém falou nada sobre. Por meses, eu diria. A casa parecia artificialmente desbotada e naturalmente silenciosa. Mas com o passar do tempo, o nome dele voltou a ser mencionado.

A primeira vez foi num jogo do botafogo. Meu tio citou que Beijamin jogava muito bem. Um talento nato. Meu pai disse que ele podia ter seguido carreira. Já estava na escolinha há dois anos. Era o sonho do meu pai ter um filho jogador profissional. Outro dia qualquer, minha avó comentou que ele estaria fazendo treze anos. E com essa idade “Obviamente já teria um monte de namoradinhas”. Lógico, ele era tão lindo, tão falante, tão engraçado.

Eu sempre tirei notas ótimas. Principalmente em matemática. Então meus pais sempre acharam que eu seria o “empresário da família” enquanto Beijamin seria o “bon vivant”. Mas eu gostava muito mesmo de matemática. Tanto que quis fazer isso: ensinar. Meu pai nem esboçou um sorriso quando eu passei no vestibular. Na minha festa de formatura, depois de um Whisky e outro, meu pai disse: “Depois de amanhã o Beijamin faria vinte e três anos. Com essa idade acho que ele já estaria jogando na Europa”.  Eu acenei. Concordei.

No dia do enterro do meu irmão, eu olhei bem para os meus pais. A expressão deles era tão devastada que eu acreditei que eles nunca mais voltariam a sorrir. Então, eu tenho certeza que perder um filho é a pior coisa que pode acontecer com alguém. Mesmo com doze anos eu entendi isso. Mas, ao mesmo tempo, existe um certo tipo de orgulho macabro. Um filho morto não mata suas expectativas. Ele não decepciona. Todas as suas qualidades estão intactas na memória dos pais. E todos os defeitos sete palmos a baixo da terra.

Na foto, via-se ao lado de sua mãe quando ainda era só um protótipo de gente. Sorriu ao lembrar das viagens repentinas, dos passeios de barco, da água de côco e do picolé de cajá que sempre pedia àquela mulher a quem chamava de mãe. Muitos anos se passaram desde o tempo da fotografia e de imediato notou como perdera boa parte de sua inocência.

Sentada no pé de uma das inúmeras árvores da cidade, segurava um livro de Virginia Woolf e a foto funcionava ali como seu marca página. Sentia saudades da mãe. Dona Beth. Uma lágrima ameaçou descer, quando lembrou da ingenuidade com que reagiu a um olho roxo, anos atrás.

Era verão, período de férias escolares. Beth havia acabado de chegar de viagem e trazia no rosto um roxo olho que saltava. Na época, tinha deixado Ana com uma babá de confiança. Ana não entendeu. Ainda não tinha maturidade para entender o que era a violência e seus motivos e suas consequências.

A mãe gentilmente lhe disse que havia sido alvo de uma bola perdida. Moleques que jogavam futebol no meio da rua, fingindo o gol com pares de chinelos velhos. Dias depois, a realidade veio e socou Ana igualmente havia feio com Beth. "Não foi uma bola, foi o meu namorado".

Agora, Ana sorria com os olhos marejados, um pouco triste e um pouco feliz por ter perdido aquela pureza.

Talvez, pensou, tenha sido ali o início de toda uma trajetória que a levou a se sentar sob uma pomposa árvore numa tarde de verão atípica, com um livro de Virginia Woolf nas mãos. Foi lá, naquele tempo, aos 8 anos de idade, que se iniciou o desejo de que mulheres fossem tão respeitadas quanto os homens. Em sua cabeça de criança, nada justificava aquele olho roxo em Beth. Não entendia. Seria uma punição? Pelo quê?

A partir daquele momento, então, passou a existir um elo inquebrável e inegociável entre Ana e sua mãe e todas as mulheres de todos os tempos, algo que ainda hoje ela não sabia explicar.

Da mesma forma que, em seu livro, Woolf reclamava de que sua mãe não investira em negócios e educação, Ana intrigava-se com a resiliência da mãe. E da mesma maneira com que a famosa escritora reconhecia as impossibilidades de suas ancestrais terem feito o que ela queria que tivessem feito, Ana sabia que enquanto Beth não soubesse a fortaleza que era, aceitaria qualquer punição que fosse por ser mulher.

Fechou o livro. Chorava feito uma criança. Pegou o celular e mandou uma mensagem pra Beth que dizia "Enquanto eu viver, você não estará sozinha".

Recompôs-se e seguiu o resto da tarde lendo Virginia Woolf, agradecida pelos esforços anteriores que a permitiram fazer exatamente o que estava fazendo naquele momento.

Cena 1. Int. Tarde. Sala de aula de artes.

Sala grande, com uma mesa comprida no centro. O ambiente é bem iluminado e colorido. Cerca de oito crianças estão sentadas em volta da mesa. Uma mulher está sentada descontraída em uma ponta. Seus pés estão apoiados na cadeira ao lado. Ela consulta o celular e ao mesmo tempo preenche uma tabela.

VALÉRIA
(10 anos, negra, cabelos castanhos e crespos, alta para a idade. Extrovertida, tagarela, respondona.)

Tia! Acabei a atividade! Posso escrever uma cartinha?

PROFESSORA
(26 anos, parda, cabelos cacheados. Distraída, animada, descolada)

Ta bom, ta bom… Todo dia vocês querem, né? (se levanta e vai até o armário, olhando seu conteúdo demoradamente). Mas também, tem um monte de papel legal aqui dentro… Olha! Caneta de três cores! (pegando caneta do armário. Depois volta, pega alguns materiais e coloca em cima da mesa)

Valéria começa a pegar os materiais antes que os outros alunos cheguem perto. Alguns outros também pegam materiais. A professora consulta o celular mais uma vez. Valéria parece concentrada na sua atividade.

PEDRO 

Ta escrevendo carta para o Vitor, é? (chega mais perto da cadeira de Valéria) Ô, tiaaaaa! A Valéria ta namorando com o Vitor!

VALÉRIA

Mentira, tia! Esse menino ta implicando. Vou enfiar esse lápis no olho dele aí eu quero ver!

PROFESSORA

Valéria, ninguém vai enfiar o lápis no olho de ninguém. E Pedro, deixa a Valéria quieta, tá? Ela tá tranquila na dela e isso não é todo dia. Vai fazer uma carta para a Fabia… Vai fazer uma cartinha, vai. (Pedro olha de lado para a professora e esboça um sorriso. A professora sorri também)

A professora olha o celular e desanimada o coloca no bolso. Os alunos entregam folhas com desenhos para ela. O sinal toca. Valéria é a última a deixar a sala. A professora pisca para Valéria quando ela sai.

Cena 2. Ext. Tarde. Pátio

A professora observa Valéria de longe. Ela está ao lado dos outros professores, mas não está acompanhando a conversa. Valéria está andando de um lado para o outro com a carta na mão. A professora balança a cabeça. Procura Vitor com os olhos pelo pátio.Valéria se aproxima de Vitor. A professora bebe um gole de café olhando a cena. Vitor pega a carta cabisbaixo e não diz nada. Se afasta. A professora olha o celular. Um professor faz uma piada sobre o lanche. Valéria sai com passos apertados e segurando o choro. A professora olha para o celular novamente. No celular tem uma mensagem enviada por ela mesma. A mensagem diz “E aí, você vai mesmo hoje?”. A mensagem anterior também era dela. Valéria vai em direção ao banheiro. A professora também queria ir.

Os alunos brincam pelo pátio. A professora percebe uma movimentação de outros meninos perto de Vitor. Eles estão rindo e tem um papel na mão de um deles. A professora anda em direção a eles. Os meninos se dispersam e o papel volta para a mão de Vitor. A professora continua atravessando o pátio e passa direto por eles.

Cena 3. Int. Tarte. Banheiro das meninas
A professora entra no banheiro apertado. Duas meninas estão se maquiando no espelho e cochichando. Uma das divisórias está fechada.

PROFESSORA

Valéria? Valéria? Você tá ai? Fala comigo, chuchu.

VALÉRIA

Sai! Eu não quero falar com ninguém!

A professora olha para as duas meninas e indica a porta com a cabeça. Dá um sorriso no final. As duas retribuem e saem do banheiro.

PROFESSORA

Eu fiz alguma coisa com você? Alguém fez?

VALÉRIA

(Abre a porta e da um abraço na professora. Tira seus braços do pescoço dela e enxuga uma lágrima. Olha para a professora. Que olha firme de volta.)

Esses meninos, tia… Esses meninos. Eles sobem no muro, andam sozinhos, pegam barata com a mão, tudo! Mas eles não olham a gente. Eles não olham direito.

PROFESSORA 

(A professora aperta o celular nas mãos e respira fundo. )

Eu queria te dizer que.... Que fica melhor quando a gente cresce, mas não fica. Essa vida não é fácil. Para as falantes e cheias de opinião como eu e você… Menos ainda. Mas nós somos muitas. E você pode mandar uma carta para uma amiga. A Lorena por exemplo. Tenho certeza que você vai receber uma linda de volta!

Valéria sorri e acena positivamente. A professora faz um carinho na cabeça dela. Valéria sai do banheiro. A professora pega o celular e digita “migs, vamos ver o filme do Tarantino?”. Pega o celular e guarda no bolso. Se olha no espelho. Ri de si mesma.

Fade Out.

É verdade que algumas pessoas têm o hábito de julgar as outras pelo signo, pelas séries que assistem ou pelas sagas literárias das quais são fãs. Acontece que com Ana a coisa era meio diferente. Julgava seus pretendentes pelos sapatos que usavam. Era só bater os olhos no que o rapaz colocara nos pés para saber.

Pegava o metrô e a mente não descansava um minuto. "Ah, esse é do tipo que beija meninas à força na balada". "Educado". "Estudante de humanas, na certa". "Ah, não! Stalker!". E assim costumava passar pedaços das suas tardes enquanto voltava do trabalho. Bastava a companhia dos fones de ouvido para se render a seu tribunal inquisitório particular.

Nesse dia, voltava um pouco mais tarde, depois de ter feito hora extra. Mesmo cansada, decidiu atender ao pedido da amiga que dizia pra ela ir à casa do fulano, porque estava "todo mundo" lá. Sempre achava que quando estava "todo mundo" em um lugar era bom que ela também estivesse.

Ao chegar, toda descabelada, logo se ajeitou ao notar um outro que lá estava. Nunca o tinha visto. Era primo de um amigo ou algo assim que ficou lá, sorrindo, enquanto ela se perdia em sua presença. Tinha uns olhos sorridentes, o rapaz. Um sorriso claro, manso, como quem diz: "por favor, não se acanhe".

"Ana!", chamou a amiga. Saiu do transe, tirou as sandálias e meio atrapalhada perguntou onde tinha alguma coisa pra beber. Encheu o copo com qualquer gaseificado que tivesse na geladeira. Não tinha sede, era só uma desculpa para observar de longe o cabelo bagunçado do rapaz que contava inúmeras histórias engraçadas da cidade onde morava. E ria. Ria de fechar os olhos.

Até que entre uma risada e outra, quando fulano contava alguma piada, ele a olhou e um sorriso tímido estampou o rosto de Ana a ponto de deixá-la levemente rosada. Começou aí o que os românticos chamam de história de amor e o que os pessimistas costumam chamar de cilada. O irônico, que Ana só notou quando todos se despediam e ele se oferecia para deixá-la em casa, era que, enquanto ela rapidamente se apaixonava, o rapaz estava descalço. E ela também.

Eu sei que ando arrumando confusão à beça, brigando por qualquer coisa e me espalhando por aí. Eu pareço uma fogueirinha querendo encandear tudo. Mas fogueirinha eu não sei ser, meu bem. Eu faço é incêndio até eu mesma virar pó e arrumar um jeito de me reinventar. Eu te chacoalho inteiro para ver se você presta atenção em mim, eu quero ser vista por você. E essa solidão aqui dentro está acabando com meu sistema imunológico e meu afeto que só faz transbordar. Então, eu arrumo confusão, faço rebuliço, fico girando feito cigana tonta, arrumo quiprocó. Eu me agito como as moléculas de água dentro da panela quente. Você diz que eu tenho mania de fugir, mas diz isso porque ainda não me viu entrar em ebulição. Eu insisto, brigo, entorno o copo, fico de ressaca, mas juro que me dissipo também. Eu fiz quase tudo certo dessa vez, deixei carta de recomendação e manual de instrução. Você nem leu, você não sabe me ler. Eu que sou só desejo, só vontade, só erupção, estou sem ter onde me espalhar. Você me vira às costas. Por isso eu brigo. Eu baixo a guarda e você vem ser falador de promessa. Desenha planos e eu acredito em você. Eu não tenho nada de leão no meu mapa astral, mas gosto também de ser espetáculo na vida das pessoas. Você diz que agora é tempo de se preservar para o futuro, mas o futuro não existe, amor. Eu te quero agora. Eu te quero o tempo todo. Sou mesmo dessas de excesso. Sou dessas que peca pelo exagero. Mas eu juro, eu sou um pecado gostoso. Não me venha com essa de me provar com uma colher de chá. Sem gula não dá.

Maria Gabriela Veridiano é escritora, colaboradora da Obvious Magazine e é do mundo das Letras. Quem a vê logo percebe, é sempre meio assim, meio fogo, meio gasolina.


Quando o primeiro confete bateu no asfalto, eu fui transportada para sete anos antes.

Não metaforicamente. Literalmente.

Eu tinha dezoito anos e estava na rua. Não era carnaval ainda, mas parecia. Essas datas comemorativas flutuantes fazem uma confusão na minha mente. Mas quando me esforcei um pouco e olhei em volta, tive certeza. Eu estava no bloquinho do meu bairro. Ele sempre acontecia antes do “carnaval de verdade”. Eu estava com uma garrafa de catuaba na mão. Era Selvagem. Eu ainda não tinha descoberto a Xixa. Não naquela época. Mas graças a Deus essa não era “eu daquela época”. Era eu de sete anos depois. Então quando eu dei uma golada, desceu estranha, meio amarga. Tinha gosto de ensino médio.

Eu lembrava especificamente desse dia. Eu criei uma fama para mim esse dia. Uma fama de “farrista e namoradeira”. Esses nomes são nomes bonitos para bêbada e piriguete. Os mais velhos do subúrbio às vezes tem dessas. De colocar uma capinha inocente em alguns adjetivos indesejados. Hoje em dia eu gostava disso. Dessa fama. Quando você mantém as expectativas baixas, sempre é mais fácil surpreender positivamente. Virei mais um pouco de selvagem. Eu ia ter que lidar com isso cedo ou tarde. Era melhor que fosse hoje. Isso não era nada pra quem virava tequila e já tinha mais drogas ilícitas na lista do que gostava de admitir.

Eu tinha me perdido das minhas primas. Eu tinha certeza porque contei essa história muitas vezes. De longe eu avistei ele. O menino de cachinhos loiros e cara de surfista. Eu já tinha dado alguns beijos displicentes em amigos de infância e colegas de classe aquele dia, mas nada tinha importado muito. Eu normalmente não tomaria a iniciativa, mas eu já sabia que ia rolar, então apenas fui. Cheguei perto do menino e ofereci a catuaba. Ele aceitou e observou, com extrema precisão, que o bloco estava longe de onde estávamos. Ele perguntou se eu tinha vindo sozinha. Eu disse que não, que precisava achar minhas primas. O menino fez que sim e pegou minha mão, me levando para a direção do bloco.

Antes de encontrar minhas primas, nós encontramos alguns amigos dele. Todos tinham instrumentos e eram incríveis. Nos perdemos desses algumas vezes, quando estávamos ocupados descobrindo um ao outro em esquinas ou muros desabitados. Ele me disse que ia estudar em outro estado. Queria estudar biologia marinha. Eu disse que ia estudar cinema e ele acrescentou que eu definitivamente, entre todas as meninas do bloco, era a que mais tinha cara de cineasta. Eu não lembrava dessa fala e foi ótimo que eu estivesse revivendo esse dia. Quando finalmente encontramos minhas primas e minha garrafa de Selvagem estava vazia, elas não pareciam preocupadas. Ao que parecia, todo mundo tinha me visto em cima do pseudo-trio fazendo uma coreografia estranha porém altamente viciante, com um menino loiro desconhecido. “Eu sou da Serra”, explicou o próprio, justificando o fato de ninguém conhecer ele. Foi um consenso que isso era plausível. E foi também um consenso que ele era super legal e conseguia virar uma latinha de cerveja como ninguém. Eu sorri.

O segundo confete caiu do asfalto e eu estava no Centro. Eu geralmente gostava daquele carnaval. Mas a lembrança de um não-carnaval tão mais impactante e marcante gerou um desconforto. Mesmo que o copo na minha mão fosse de Xixa. O terceiro confete caiu. Eu estava em uma rua extremamente lotada. Mal dava para andar mas eu estava visivelmente feliz. Meu coração batia num ritmo próprio. Uma moça linda e com uma fantasia brilhosa passou purpurina dourada no meu rosto. De um lado, de outro e em cima. Uma espécie de consagração, de batismo. Você me olhou pela primeira vez. Não que nunca tivesse me visto, mas olhar era outra coisa.

Abri os olhos. Eu tinha certeza que tinha sido transportada para algum dia futuro. Eu precisava fazer alguma coisa sobre isso. Aqueles instantes me fizeram suportar mais três horas de bloco enfadonho. Não era o primeiro que eu presenciava. Mas era o último.

Você pra mim parece um blues ou qualquer coisa assim. Talvez tenha sido o alinhamento dos astros, ou um encontro de almas conhecidas, ou um desígnio do divino, ou só o acaso. Talvez, tenha sido a lua ou meu estômago doído que me fez chegar mais tarde. Só sei que os seus olhos olharam os meus meio que sem permissão e, depois disso, os meus se envergonhavam sempre que se viam diante dos seus. A ironia é que, sim, não poderia ser mais piegas do que é.

Você pra mim parece uma bossa triste ou qualquer coisa assim. Menos pelos seus tímidos olhos tristonhos e mais pela saudade que deixou. E, suponho, mal sabe o que causou. Pode ser que, depois que o ano virou, eu tenha me cansado um pouco da minha própria fugacidade e isso seja só e simplesmente uma crise passageira de consciência. Ou quem sabe um tipo meio bizarro de penitência.

Você pra mim parece uma música do Cazuza. Desde que deixei a cidade, ela não sai da minha cabeça. Nem você. É cômico tudo isso, porque mal sei suas cores favoritas ou os planos futuros. Mas a coisa é que gostaria de saber, saber "as cores e as coisas pra te prender". Crise, penitência ou acaso... Agora já não importa, quando é simples perceber que alguma coisa sua ficou em mim.

Você pra mim parece um assovio qualquer que ouvi pela rua dia desses. Ou o vento que passa pela janela entreaberta. Ou o ruído da panela de pressão que, afoita, corre para deixar o feijão pronto a tempo. E, nessa loucura adolescente, fica difícil dosar as palavras. Ou saem fortes demais ou saem fracas demais. Seria possível encontrar alguma maneira de dizer que, apesar de não ser nada demais, é grande o suficiente pra me tirar do tédio?