Eu sei que ando arrumando confusão à beça, brigando por qualquer coisa e me espalhando por aí. Eu pareço uma fogueirinha querendo encandear tudo. Mas fogueirinha eu não sei ser, meu bem. Eu faço é incêndio até eu mesma virar pó e arrumar um jeito de me reinventar. Eu te chacoalho inteiro para ver se você presta atenção em mim, eu quero ser vista por você. E essa solidão aqui dentro está acabando com meu sistema imunológico e meu afeto que só faz transbordar. Então, eu arrumo confusão, faço rebuliço, fico girando feito cigana tonta, arrumo quiprocó. Eu me agito como as moléculas de água dentro da panela quente. Você diz que eu tenho mania de fugir, mas diz isso porque ainda não me viu entrar em ebulição. Eu insisto, brigo, entorno o copo, fico de ressaca, mas juro que me dissipo também. Eu fiz quase tudo certo dessa vez, deixei carta de recomendação e manual de instrução. Você nem leu, você não sabe me ler. Eu que sou só desejo, só vontade, só erupção, estou sem ter onde me espalhar. Você me vira às costas. Por isso eu brigo. Eu baixo a guarda e você vem ser falador de promessa. Desenha planos e eu acredito em você. Eu não tenho nada de leão no meu mapa astral, mas gosto também de ser espetáculo na vida das pessoas. Você diz que agora é tempo de se preservar para o futuro, mas o futuro não existe, amor. Eu te quero agora. Eu te quero o tempo todo. Sou mesmo dessas de excesso. Sou dessas que peca pelo exagero. Mas eu juro, eu sou um pecado gostoso. Não me venha com essa de me provar com uma colher de chá. Sem gula não dá.

Maria Gabriela Veridiano é escritora, colaboradora da Obvious Magazine e é do mundo das Letras. Quem a vê logo percebe, é sempre meio assim, meio fogo, meio gasolina.


Quando o primeiro confete bateu no asfalto, eu fui transportada para sete anos antes.

Não metaforicamente. Literalmente.

Eu tinha dezoito anos e estava na rua. Não era carnaval ainda, mas parecia. Essas datas comemorativas flutuantes fazem uma confusão na minha mente. Mas quando me esforcei um pouco e olhei em volta, tive certeza. Eu estava no bloquinho do meu bairro. Ele sempre acontecia antes do “carnaval de verdade”. Eu estava com uma garrafa de catuaba na mão. Era Selvagem. Eu ainda não tinha descoberto a Xixa. Não naquela época. Mas graças a Deus essa não era “eu daquela época”. Era eu de sete anos depois. Então quando eu dei uma golada, desceu estranha, meio amarga. Tinha gosto de ensino médio.

Eu lembrava especificamente desse dia. Eu criei uma fama para mim esse dia. Uma fama de “farrista e namoradeira”. Esses nomes são nomes bonitos para bêbada e piriguete. Os mais velhos do subúrbio às vezes tem dessas. De colocar uma capinha inocente em alguns adjetivos indesejados. Hoje em dia eu gostava disso. Dessa fama. Quando você mantém as expectativas baixas, sempre é mais fácil surpreender positivamente. Virei mais um pouco de selvagem. Eu ia ter que lidar com isso cedo ou tarde. Era melhor que fosse hoje. Isso não era nada pra quem virava tequila e já tinha mais drogas ilícitas na lista do que gostava de admitir.

Eu tinha me perdido das minhas primas. Eu tinha certeza porque contei essa história muitas vezes. De longe eu avistei ele. O menino de cachinhos loiros e cara de surfista. Eu já tinha dado alguns beijos displicentes em amigos de infância e colegas de classe aquele dia, mas nada tinha importado muito. Eu normalmente não tomaria a iniciativa, mas eu já sabia que ia rolar, então apenas fui. Cheguei perto do menino e ofereci a catuaba. Ele aceitou e observou, com extrema precisão, que o bloco estava longe de onde estávamos. Ele perguntou se eu tinha vindo sozinha. Eu disse que não, que precisava achar minhas primas. O menino fez que sim e pegou minha mão, me levando para a direção do bloco.

Antes de encontrar minhas primas, nós encontramos alguns amigos dele. Todos tinham instrumentos e eram incríveis. Nos perdemos desses algumas vezes, quando estávamos ocupados descobrindo um ao outro em esquinas ou muros desabitados. Ele me disse que ia estudar em outro estado. Queria estudar biologia marinha. Eu disse que ia estudar cinema e ele acrescentou que eu definitivamente, entre todas as meninas do bloco, era a que mais tinha cara de cineasta. Eu não lembrava dessa fala e foi ótimo que eu estivesse revivendo esse dia. Quando finalmente encontramos minhas primas e minha garrafa de Selvagem estava vazia, elas não pareciam preocupadas. Ao que parecia, todo mundo tinha me visto em cima do pseudo-trio fazendo uma coreografia estranha porém altamente viciante, com um menino loiro desconhecido. “Eu sou da Serra”, explicou o próprio, justificando o fato de ninguém conhecer ele. Foi um consenso que isso era plausível. E foi também um consenso que ele era super legal e conseguia virar uma latinha de cerveja como ninguém. Eu sorri.

O segundo confete caiu do asfalto e eu estava no Centro. Eu geralmente gostava daquele carnaval. Mas a lembrança de um não-carnaval tão mais impactante e marcante gerou um desconforto. Mesmo que o copo na minha mão fosse de Xixa. O terceiro confete caiu. Eu estava em uma rua extremamente lotada. Mal dava para andar mas eu estava visivelmente feliz. Meu coração batia num ritmo próprio. Uma moça linda e com uma fantasia brilhosa passou purpurina dourada no meu rosto. De um lado, de outro e em cima. Uma espécie de consagração, de batismo. Você me olhou pela primeira vez. Não que nunca tivesse me visto, mas olhar era outra coisa.

Abri os olhos. Eu tinha certeza que tinha sido transportada para algum dia futuro. Eu precisava fazer alguma coisa sobre isso. Aqueles instantes me fizeram suportar mais três horas de bloco enfadonho. Não era o primeiro que eu presenciava. Mas era o último.

Você pra mim parece um blues ou qualquer coisa assim. Talvez tenha sido o alinhamento dos astros, ou um encontro de almas conhecidas, ou um desígnio do divino, ou só o acaso. Talvez, tenha sido a lua ou meu estômago doído que me fez chegar mais tarde. Só sei que os seus olhos olharam os meus meio que sem permissão e, depois disso, os meus se envergonhavam sempre que se viam diante dos seus. A ironia é que, sim, não poderia ser mais piegas do que é.

Você pra mim parece uma bossa triste ou qualquer coisa assim. Menos pelos seus tímidos olhos tristonhos e mais pela saudade que deixou. E, suponho, mal sabe o que causou. Pode ser que, depois que o ano virou, eu tenha me cansado um pouco da minha própria fugacidade e isso seja só e simplesmente uma crise passageira de consciência. Ou quem sabe um tipo meio bizarro de penitência.

Você pra mim parece uma música do Cazuza. Desde que deixei a cidade, ela não sai da minha cabeça. Nem você. É cômico tudo isso, porque mal sei suas cores favoritas ou os planos futuros. Mas a coisa é que gostaria de saber, saber "as cores e as coisas pra te prender". Crise, penitência ou acaso... Agora já não importa, quando é simples perceber que alguma coisa sua ficou em mim.

Você pra mim parece um assovio qualquer que ouvi pela rua dia desses. Ou o vento que passa pela janela entreaberta. Ou o ruído da panela de pressão que, afoita, corre para deixar o feijão pronto a tempo. E, nessa loucura adolescente, fica difícil dosar as palavras. Ou saem fortes demais ou saem fracas demais. Seria possível encontrar alguma maneira de dizer que, apesar de não ser nada demais, é grande o suficiente pra me tirar do tédio?