O perdigoto


Izabel gritou de leve na calçada ensolarada a pedir que o ônibus abrisse a porta do meio. Abriram, subiu. Munida de seus cinco filhos pequenos e mirrados de tão fininhos; e uma de colo, negra de cabelos crespos muito loiros e esvoaçados. Izabel esticou-se numa rapidez impensada para que seus pares de braços e pernas servissem de corrimãos e escoras para os cinco pequenos mirrados no chão. Cada um deles arregalava as atenções em busca de assentos vazios para sentarem-se. Nenhum deles achou, nem a mãe. Izabel teve de pedir para acomodá-los no assento preferencial, onde conseguiu juntar num só banco suas cinco crias espertas – que agora já se deleitavam com o vento fresco da janela.

Izabel ficou de pé enquanto várias pessoas a julgavam com o olhar, de cima a baixo. Do chinelo branco encardido ao cabelo crespo alaranjado de sol. Todos. Todos olhavam. Houve até um senhor que usou do olhar gélido para reprovar a quantidade de filhos de Izabel. Ato que não surtiu efeito na imagem calejada dela que, apesar de exalar certa juventude, carregava mesmo era muita vida naquela pele áspera. Saiu de perto dos filhos para pagar a passagem, mesmo sendo vista como ‘uma dessas que pula a roleta quando convém’.

A cada solavanco as crianças riam alto. A cada freada brusca Izabel mantinha-se fixada de frente para sua prole de cinco, com a sexta agarrada em seu colo – não nos esqueçamos da sexta filha. A senhora ao lado das crianças estava visivelmente incomodada com a situação. Decidiu levantar-se então, mas não antes de resmungar baixinho alguma besteira de reprovação sobre a cena. Obviamente Izabel nem lhe deu ouvidos ou olhares. Sentou ao lado dos filhos com a pequena chorona no colo. Chorona porque queria mamar. Izabel sacou logo o peito para fora e aliviou a menina enquanto aproveitava o certo silêncio para olhar o celular.

“Nossa, que isso!”, falou a mulher a prestar atenção na cena. Uma mulher reprovando outra mulher. Essa era a cena. Os homens, dois deles, olhavam era o peito de Izabel com aquela cara de ‘essa mina tá dando mole’. Só que Izabel para ninguém dava confiança. De repente adentra no ônibus uma daquelas marionetes vestidas com a blusa de uma casa protestante de recuperação para dependentes químicos, gritando que o deus cristão salvou a vida dele; que ele agora é um homem correto e livre das drogas – apesar de não entender ter trocado o vício da cocaína pela religião, igreja, cultos…

O homem berrava soltando perdigotos. Um desses foi parar bem no rosto de Izabel, interrompendo a distração dela com o celular. Sim, Izabel reprovou aquela saliva indesejada em seu rosto. Encarou o homem e disse bem alto: Cê cuspiu em mim!. Não, o homem não pediu desculpas. Ele alegou que o deus age por ele e aquele perdigoto foi enviado para ela prestar atenção na palavra do deus. Sim, os passageiros riram todos, menos Izabel, que o chamou de porco nojento e logo recebeu uma resposta: ‘sem deus no coração a gente só padece fazendo coisas erradas e depois pagamos com um monte de filho passando fome’.

Izabel fez o homem descer com as canetas coloridas ainda não mão, escorraçado e acuado. Mesmo na calçada ele continuava a gritar que ela estava pagando pelo escárnio que faz na terra. Os filhos ficaram todos quietinhos vendo a mãe se exaltar e depois voltar para eles. Os passageiros nem sequer moveram um dedo. Aliás, moveram sim, alguns deles estavam filmando tudo com o celular para colocar na internet. A menina no colo de Izabel chorava e chorava tanto que começaram a reclamar, mas Izabel seguiu calada para seu trajeto.

O homem na calçada também seguiu. Foi para a casa jantar com Irene, a esposa, e seus dois filhos adolescentes que ainda não sabem que o pai tem mais quatro filhos largados e abandonados com as ex-mulheres pelo mundo, iguais aos perdigotos que cospe pelas ruas e geram o incomodo de cada dia. Por não saberem, eles acolhem o pai lhe descalçando os sapatos, servindo às mãos a janta e arrumando a toalha para o banho, não sem antes escutar uma leitura bíblica que prega sobre a união da família.

Magalli S. Lima é jornalista e também se atreve a prosear. É uma querida, empoderada e a nossa convidada do mês.