Tirando os sapatos


É verdade que algumas pessoas têm o hábito de julgar as outras pelo signo, pelas séries que assistem ou pelas sagas literárias das quais são fãs. Acontece que com Ana a coisa era meio diferente. Julgava seus pretendentes pelos sapatos que usavam. Era só bater os olhos no que o rapaz colocara nos pés para saber.

Pegava o metrô e a mente não descansava um minuto. "Ah, esse é do tipo que beija meninas à força na balada". "Educado". "Estudante de humanas, na certa". "Ah, não! Stalker!". E assim costumava passar pedaços das suas tardes enquanto voltava do trabalho. Bastava a companhia dos fones de ouvido para se render a seu tribunal inquisitório particular.

Nesse dia, voltava um pouco mais tarde, depois de ter feito hora extra. Mesmo cansada, decidiu atender ao pedido da amiga que dizia pra ela ir à casa do fulano, porque estava "todo mundo" lá. Sempre achava que quando estava "todo mundo" em um lugar era bom que ela também estivesse.

Ao chegar, toda descabelada, logo se ajeitou ao notar um outro que lá estava. Nunca o tinha visto. Era primo de um amigo ou algo assim que ficou lá, sorrindo, enquanto ela se perdia em sua presença. Tinha uns olhos sorridentes, o rapaz. Um sorriso claro, manso, como quem diz: "por favor, não se acanhe".

"Ana!", chamou a amiga. Saiu do transe, tirou as sandálias e meio atrapalhada perguntou onde tinha alguma coisa pra beber. Encheu o copo com qualquer gaseificado que tivesse na geladeira. Não tinha sede, era só uma desculpa para observar de longe o cabelo bagunçado do rapaz que contava inúmeras histórias engraçadas da cidade onde morava. E ria. Ria de fechar os olhos.

Até que entre uma risada e outra, quando fulano contava alguma piada, ele a olhou e um sorriso tímido estampou o rosto de Ana a ponto de deixá-la levemente rosada. Começou aí o que os românticos chamam de história de amor e o que os pessimistas costumam chamar de cilada. O irônico, que Ana só notou quando todos se despediam e ele se oferecia para deixá-la em casa, era que, enquanto ela rapidamente se apaixonava, o rapaz estava descalço. E ela também.