Era uma vez o silêncio


Existe uma lenda que, quase como todas as lendas, tem mais de verdade do que se espera, de que a linguagem surgiu porque tem coisas que ações não dizem. Você consegue mostrar que está com fome, que quer dormir, que não gosta de alguém, que gosta de alguém. Mas de lá pra cá eu tenho a impressão de que as pessoas se esqueceram do não verbal. Sorri é ressaltar que está muito feliz. Raspar o prato com olhos brilhando é dizer que está muito gostoso. Se enrolar num cobertor é relembrar que está com frio. É como se o ser humano tivesse perdido sua linguagem primária. 

Cada vez mais fã do silêncio e mais esperta para ler olhos, Catharina se fatiga ao ouvir explicações longas demais e floresce quando concorda com alguém usando os olhos. Certa de que as palavras são a maior invenção da humanidade e, por isso mesmo, usá-las indiscriminadamente é desperdício.

No caminho para o trabalho, chovia torrencialmente. Um carro desconhecido buzinou para ela na avenida engarrafada. No banco de trás estava um dos seus melhores amigos de faculdade. Ele fez sinal para que ela entrasse. Pedro nunca foi o mais falante nem o mais expressivo do círculo de amizade, mas Catharina sempre admirou sua capacidade de escolher as palavras certas e por nunca deixar os silêncios constrangedores.

As outras três pessoas dentro do carro falavam sem parar sobre o tempo, a notícia do jornal, o jogo do Brasil, o trabalho e o preço do almoço nos dias de hoje. E mesmo contra todas as teorias, que dizem que coisas complexas tem que ser verbalizadas, Pedro disse que sentia saudade, mas não tinha tempo. Que tinha amor, mas tinha medo. Que sempre gostou dela, mas tinha medo de afastá-la. E que na busca por deixar ela sempre por perto, a fez partir. Tudo isso com um toque de dedos tamborilantes.

Catharina chegou mais perto, querendo dizer apenas: está tudo bem.