Ouro dos Tolos


Certa vez, a mãe disse pra ela que ir para São Paulo era coisa de gente desesperada, ou que tinha um parafuso a menos. “Onde já se viu, um lugar que ninguém te conhece, não sabe quem é sua família, não foi sua professora, vai te tratar melhor que o lugar que você nasceu?”. Ela discordava. Queria mostrar para o mundo sua arte e seu olhar. O peso das palavras e a leveza do click. Além do mais, não tinha boa fama. Nem a sua escola. Nem sua família. Achava que a cidade grande era um lugar de tantas possibilidade, de tantos recomeços e tantos encontros...

E era mesmo. Cada vez que ia a São Paulo e descobria um novo bairro, bar, praça e galeria, queria ficar. Contava moedas, juntava as joias e pensava: será? As luzes e as placas e o metrô e as gentes e as chances. Tudo fazia olho brilhar saltitante. Conversava com gente de lá, e ficava sabendo de peça nova, de coisa barata, de vida agitada. Amores improváveis e empregos dos sonhos. E ela olhava para a mala. Quando eu venho? 

Mas às vezes era desolador. Gente que não tinha tempo de ver quadro novo no museu. Que não via o amigo há mais de mês. Que tinha mudando cinco vezes de emprego ou de casa. A mala ficava no canto. Muda e sem alça. 

Dessa vez tinha sido diferente. Conheceu um lado mais sombrio da Cidade. Com estradas escuras e intermináveis. Ligações não atendidas. Mensagens não respondidas. Palavras partidas. E as horas dentro de carros desconhecidos. As distâncias de São Paulo lhe causaram claustrofobia. Uma ligação, despretensiosa no meio do caos, que tinha que fotografar no interior do Espírito Santo. Interior. A Palavra sempre foi tão forte pra ela, porque menina periférica quer saber é das luzes da cidade. Mas naquele  momento, qualquer resposta brilhava mais que holofote. 

Quando chegou àquela praia de Iriri, lembrou-se do carnaval que passou lá. Quando nem sabia que amava tanto carnaval. Quando nunca tinha ido a São Paulo. Quando nunca tinha segurado uma câmera. Mas seus olhos eram lente de longo alcance. Sua memória de HD. Estava tudo salvo. Não precisava de mapa e nem de aplicativo. Era tudo tão orgânico. Um misto de pertencimento com o local e descolamento da cidade grande foi um baque inesperado.  

A verdade é que ela sempre pensou São Paulo, mas era Praia do interior. Era conhecer a dona do quiosque. Era andar a pé. Tirar uma foto  na areia. Deixar a câmera na areia sem se preocupar com a possível falta dela ao retornar do mergulho. Era esses lugarzinhos onde a palavra vale mais que o cifrão. E um prato quente de comida mais do que cordão de ouro. 

Porque ouro é algo mais para fora, mais para os outros. E a comida é para dentro. Para si. Ouro mostra sua riqueza para um outro que nem te perguntou nada. É uma máscara. Uma máscara que muitas vezes esconde uma cara feia. Cara feia para mim é fome. E às vezes é fome mesmo o que essa gente sente. Ou por não querer sair de um padrão de beleza ou para entrar em um padrão de riqueza.  E comida aquece o peito. Faz valer um dia longo de trabalho. Põe amigos e põe família em volta de uma mesa. Porque todo ouro dos judeus virou pó na segunda guerra. Todo ouro valia menos que um  prato de comida. Menos que a vida. O ouro era apenas um metal frio. Que não escondia que eles eram judeus. Que não escondeu de onde ela vinha. Que não esconde de onde eu vim. 

Ouro mesmo é pôr-do-sol. Laranja. Amarelo. Dourado.