O velho acordeon

Quando eu era pequena, queria muito aprender acordeon. Meu avô tocava, e quando ele fazia isso, fechava os olhos e estava em outro mundo. Podia estar tudo desabando que seu semblante cansado se iluminava e vageava para o além mar.

Queria vaguear também. Queria estar livre de todos os pensamentos por uma hora ou duas. Eu era uma criança que pensava muito. Pensava no que faria quando crescesse, da onde vinha o dinheiro, se seria legal quando a gente virasse adulto e, certa vez, surtei, quando descobri que Papai Noel não existia. Ou seja, como as outras crianças, as que não tinham pais, as que moravam na rua, as de famílias pobre, ganhavam presentes? Não ganhavam. E isso acabou comigo.

Então, desde cedo, as duas maiores ambições da minha vida eram o acordeon e as crianças. Eu queria ajudá-las de alguma forma. Meu avô dizia que eu poderia ser uma grande artista. Uma cantora à moda antiga, com meu acordeon e com a minha grande fortuna, ajudaria todas elas. Eu adorei a ideia.

O Acordeon era pesado. Era difícil de ajustar nos meus braços pequenos. Eu nunca fui das pessoas mais jeitosas e delicadas. E eram muitos movimentos para serem feitos. Movimentos demais. Mas eu não desistia. Treinava muito. Tentava me adequar usando outros instrumentos. Piano. Teclado. Violão. Fui a todas as apresentações de acordeon que podia, para ver os grandes. Aprender com eles. Meu avô a tira colo,  admirado com o meu empenho.

Um dia,  fui nesse sarau e era um lugar lindo. Uma montanha azul do lado. Um cheiro de café que se espalhava no ar. Uma paz. Tinham umas lamparinas espalhadas pelo pequeno palco e o moço que tocava tinha a mesma paz que meu avô, bem ali, nos olhos fechados, no meio sorriso. Cheguei em casa e escrevi sobre isso. Não vi outra forma melhor para me lembrar para sempre desse dia, do que colocá-lo no papel.

E começou a ser sempre sim. Sempre que eu via uma coisa bonita, que conhecesse alguém legal, que observasse uma cena tocante, eu escrevia sobre ela. Cada vez mais, eu deixava meu acordeon no canto da sala, e me voltava para o meu bloquinho. Toda vez que não conseguia uma nota, que errasse um movimento, eu escrevia sobre algo que me deixasse feliz.

Até que escrevi esse livro. Um livro pequenininho, sob uma menina e seu acordeon encantado. Quando ela tocava, todas as pessoas esqueciam seus problemas e dançavam de braços dados. Nesse tempo, eu não era mais menina e não tinha mais acordeon. Eu precisei vender para ajudar a publicar meu livro. Mas meu avó ainda tinha o seu. E ainda me inspirava, cada vez que eu o via.

Ele apareceu, no dia da estréia. Eu estava cercada de crianças que ouviam tão atentamente que chegavam a escutar, ao fundo, o acordeon tocando. Ele esperou a história terminar. Esperou elas me abraçarem e pegarem um livro. Esperou elas irem embora.

Eu me desculpei. Por ter largado o acordeon, por não ter insistido. Por saber, no fundo, que com livros eu nunca ia ter como ajudar todas as crianças que eu queria. Ele riu fraco. Baixou a cabeça.

“O acordeon é só um instrumento. Ele pode ser qualquer coisa, minha neta. Você encontrou seu acordeon. Um que toca sonhos. E, para as crianças, vale mais do que qualquer riqueza”.

E eu percebi que, no fundo,  nós dois estávamos tocando. Com os olhos.