Os feirantes


Abriu o maço de cigarros e dois a esperavam. Pendurou um deles em seus lábios, com certa tristeza de vê-los acabando, com certa alegria por poder acendê-los. Era seu rito. Depois de beber muito, fumava um cigarro, sentada no banco azul da praça em frente a sua casa, enquanto esperava a feira e via o sol se amanhecer. Acreditava muito fortemente que aquilo lhe afastava a ressaca. Tinha funcionado até então.

Adorava ver as barracas sendo montadas, o dia se abrindo como uma flor, ouvir o burburinho começando, os abraços trocados. Mas adorava, principalmente, contemplar o sorriso no rosto de quem a mão se calejava dia após dia como fruto de seu trabalho.

Aquele sorriso não era um simples símbolo da alegria, pensava sozinha. Era isso, também. Mas mais do que a expressão da alegria, aquele sorriso era a expressão da esperança, da gratidão, do amor. E tudo isso preenchia Ana de uma forma que, sabia, nenhum copo de cerveja e nenhum trago de cigarro seria capaz de fazer.

Lembrou de Jó. A história do homem que perdeu tudo o que lhe era mais precioso, filhos, terras, saúde e quase sua sanidade, mas - ainda assim - agradecia ao seu deus. Ana não acreditava em deus, mas guardava essa história - que a mãe contara inúmeras vezes - a sete chaves. A gratidão em meio a dor, por mais forte que ela seja. É sobre saber que há algo em nós maior do que as dores que, achamos, nos cegam. Há uma força.

E essa força Ana podia observar naquele exato momento. Nos sorrisos dos feirantes, nos abraços fraternos e aparentemente sinceros que trocavam. No "bom dia" que vinha daqui, de lá. Sem perceber, o cigarro já estava no fim e sentia-se bem por estar exatamente ali onde estava. Estava além de suas próprias preocupações.

- Bom dia, Ana. Bebeu muito hoje?

- Bom dia, Carlinhos. Só um pouco!

Era o mendigo da esquina. Sempre passava por ali, sorrindo. Às vezes, cantava qualquer música, enquanto procurava alguma comida nas sobras da feira. Nesse dia, ele olhou Ana bem dentro de seus olhos, sentou-se ao seu lado e disse:

- É isso, minha filha. Vamos viver. Porque, dizia o poeta, o tempo não para.

E saiu a cantarolar os versos de Cazuza, como se não houvesse nenhum problema, como se a vida fosse boa para ele. E talvez fosse, afinal. Ana sorriu. Saudou Cazuza, saudou Jó, saudou sua falecida mãe e foi para casa dormir.