Deserto de concreto


Eram 2h40 e eu tinha certeza de que ela iria aparecer. Já tinha passado um café bem forte, pois sabia que lhe agradava o paladar. Peguei uma xícara e deixei que o som do noticiário me fizesse companhia. Pra mim, quando a madrugada chegava, o silêncio era o pior os ruídos.

Encostei o corpo na parede de forma que conseguia observar a rua do alto do quarto andar de um prédio no centro da cidade. Só via um deserto úmido de concreto, escuro e sujo de panfletos sobre promoções de um salão de beleza que ficava na esquina. Sabia, pois todos os dias nos últimos seis meses passava por ali e lia, mesmo sem querer, "pé e mão a dez reais".

Deixei o café esfriar enquanto pensava nessas besteiras. Eu sabia que ela viria. Quero dizer... Dois dias atrás, havíamos nos esbarrado no supermercado. Não sabia bem a diferença entre um alvejante e uma água sanitária e fiquei parado lendo rótulos coloridos que não explicavam muita coisa. Escolhi aleatoriamente, certo de que minhas roupas brancas ficariam ainda mais brancas. Mais branco que o branco.

Quando ia entrando no corredor de produtos de higiene, pude ver seus longos e inconfundíveis cabelos ruivos. Ela segurava dois xampus.

- Em dúvida? - perguntei. Dois olhos gigantes e esverdeados me encaravam. Pareciam incrédulos.
- O que você está fazendo aqui?
- Compras. - sorri - o que mais estaria fazendo?

Ela colocou os dois frascos no carrinho e começou a empurrá-lo. Não entendi por que ela fez isso.

- O que foi? Só quero conversar - disse, segurando seu braço.
- E eu só quero fazer minhas compras em paz. - suspirou e olhou para o chão. Parecia estar um pouco trêmula.
- Tá bem. Vou te deixar em paz.
- Obrigada.
-  Mas antes... queria saber como vai a sua vida. Faz tanto tempo que não nos falamos. Soube que está morando em um apartamento no centro da cidade. Engraçado. Também estou morando por lá. Também ouvi dizer que, às quintas-feiras, você deixa o trabalho cinco minutos mais cedo pra poder tomar um chope em um dos bares mais movimentados do bairro. Soube, ainda, que você costuma voltar sozinha pra casa e quase sempre passa por uma das ruas transversais à avenida principal. Você deveria tomar cuidado. Aquela rua é muito escura às duas horas da manhã.

Ela me olhou. Parecia pálida. Disse que iria conversar comigo outra hora, talvez na próxima quinta, e foi embora, sumindo entre sabonetes e talcos para bebê.

Sorri lembrando da textura de veludo que a pele do seu rosto cheio de sardas tinha.

Eu sabia que ela viria, porque era quinta-feira. Sabia que ela teria entendido o recado. Só queria ajudá-la, protegê-la. Ela precisava vir. Não por mim, mas por ela. Sabia que ela, a qualquer momento, apareceria naquele deserto de concreto e, quando entrasse no meu pequeno apartamento, diria que estava tudo bem e que me perdoava por tudo.

Ela tinha que vir. Ela precisava urgentemente vir. Porque, bom, se não viesse... Se ela não visse, eu não sei o que eu seria capaz de fazer.