Enquanto eu viver, você não estará sozinha


Na foto, via-se ao lado de sua mãe quando ainda era só um protótipo de gente. Sorriu ao lembrar das viagens repentinas, dos passeios de barco, da água de côco e do picolé de cajá que sempre pedia àquela mulher a quem chamava de mãe. Muitos anos se passaram desde o tempo da fotografia e de imediato notou como perdera boa parte de sua inocência.

Sentada no pé de uma das inúmeras árvores da cidade, segurava um livro de Virginia Woolf e a foto funcionava ali como seu marca página. Sentia saudades da mãe. Dona Beth. Uma lágrima ameaçou descer, quando lembrou da ingenuidade com que reagiu a um olho roxo, anos atrás.

Era verão, período de férias escolares. Beth havia acabado de chegar de viagem e trazia no rosto um roxo olho que saltava. Na época, tinha deixado Ana com uma babá de confiança. Ana não entendeu. Ainda não tinha maturidade para entender o que era a violência e seus motivos e suas consequências.

A mãe gentilmente lhe disse que havia sido alvo de uma bola perdida. Moleques que jogavam futebol no meio da rua, fingindo o gol com pares de chinelos velhos. Dias depois, a realidade veio e socou Ana igualmente havia feio com Beth. "Não foi uma bola, foi o meu namorado".

Agora, Ana sorria com os olhos marejados, um pouco triste e um pouco feliz por ter perdido aquela pureza.

Talvez, pensou, tenha sido ali o início de toda uma trajetória que a levou a se sentar sob uma pomposa árvore numa tarde de verão atípica, com um livro de Virginia Woolf nas mãos. Foi lá, naquele tempo, aos 8 anos de idade, que se iniciou o desejo de que mulheres fossem tão respeitadas quanto os homens. Em sua cabeça de criança, nada justificava aquele olho roxo em Beth. Não entendia. Seria uma punição? Pelo quê?

A partir daquele momento, então, passou a existir um elo inquebrável e inegociável entre Ana e sua mãe e todas as mulheres de todos os tempos, algo que ainda hoje ela não sabia explicar.

Da mesma forma que, em seu livro, Woolf reclamava de que sua mãe não investira em negócios e educação, Ana intrigava-se com a resiliência da mãe. E da mesma maneira com que a famosa escritora reconhecia as impossibilidades de suas ancestrais terem feito o que ela queria que tivessem feito, Ana sabia que enquanto Beth não soubesse a fortaleza que era, aceitaria qualquer punição que fosse por ser mulher.

Fechou o livro. Chorava feito uma criança. Pegou o celular e mandou uma mensagem pra Beth que dizia "Enquanto eu viver, você não estará sozinha".

Recompôs-se e seguiu o resto da tarde lendo Virginia Woolf, agradecida pelos esforços anteriores que a permitiram fazer exatamente o que estava fazendo naquele momento.